sexta-feira, março 16, 2007

Se eu fosse um livro eu seria...

Água Viva

O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?

Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escreve-lo.

Não gosto do que acabo de escrever- mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu.

Parece que pela primeira vez estou sabendo das coisas. A impressão é que só não vou mais até as coisas para não me ultrapassar. Tenho certo medo de mim, não sou de confiança, e desconfio de meu falso poder.

Ocorre-me de repente que não é preciso ter ordem para viver.

Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina.

A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar- sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.

A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada.

Mas escrever para mim é frustrador: ao escrever lido com o impossível.

Eu não tenho enredo de vida? Sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver.

O verdadeiro pensamento parece sem autor.

Clarice Lispector.