quinta-feira, maio 03, 2007

Por um fio- Drauzio Varella.

Ao dar a notícia da existência de uma doença ameaçadora, testemunhei as mais desencontradas reações: da revolta expressa à surpresa atônita, ao mutismo e à aceitação passiva, do choro compulsivo ao riso espástico.
No entanto, não era raro o doente voltar no dia seguinte num estado de espírito oposto ao do dia anterior, esperançoso, decidido a lutar contra a ameaça que o assustara tanto. Nessas oportunidades, muitas vezes fiquei com a impressão de que era o paciente que me consolava.

Especialmente difícil é desvendar as expectativas que se estabelecem entre os casais quando um dos cônjuges percebe que o outro pode morrer em pouco tempo. Nessas oportunidades, geralmente afloram dois tipos contraditórios de sentimentos: de um lado, a tristeza antecipada da perda e a saudade das boas lembranças, de outro, insegurança, medo do futuro solitário e mágoas pelas frustrações, ofensas e humilhações sofridas.

Quando a esposa, consternada, diz temer que se prolongue o penar do marido e pede para que o tratamento seja interrompido, pretende evitar que ele sofra ou simplesmente espera que deixe de dar trabalho? Se um filho dedicado faz o mesmo pedido em relação à mãe, é para poupa-la de fato ou porque não consegue suportar o desgosto de vê-la ir embora lentamente?

Para livrar-se da função de acompanhante, a principal justificativa masculina são os compromissos profissionais inadiáveis: gostariam muito de ficar com a esposa ou mãe, enferma, mas durante o dia não podem faltar ao emprego e, à noite, como dormir no sofá incômodo e agüentar a luta do dia seguinte?
Os que não dispõe desse álibi lançam mão de estratégias variadas: é lógico que prefeririam estar junto para ajudar, apenas não o fazem porque são impressionáveis, impacientes, sensíveis à dor da pessoa querida a ponto de caírem em depressão profunda, ou simplesmente desajeitados, inúteis para prestar o menos auxílio.

- Doutor, papai está morrendo, mas não desiste, passa o dia no telefone dando ordens para os gerentes. Nem agora os senhores podem impedir que ele se mate de tanto trabalhar?
- Seu pai insiste que o trabalho é a razão da vida dele. Está lúcido, tem uma vontade de ferro, não vejo razão para aconselha-lo a cruzar os braços e aguardar o fim. E, mesmo que visse, não haveria a menor chance de convence-lo.
- Então fazemos o seguinte: os senhores dão um atestado dizendo que ele está mentalmente incapacitado de trabalhar, e nós o interditamos, para o bem dele.
O doente ainda viveu três meses. Dois dias antes da morte fui vê-lo em casa. Estava de roupão, na poltrona da sala, com uma sonda gástrica pendurada no nariz, muito magro outra vez, rodeado por cinco homens de gravata que, como alunos bem- comportados, anotavam suas ordens em blocos de papel.

Eu lhe disse, então, que estava aparentemente curada; daí em diante, apenas os controles periódicos. Ao ouvir a boa notícia, o marido pegou cauteloso no braço dela, que se manteve alheia ao toque e impassível como se acabasse de saber que garoava em Pequim. Na madrugada seguinte, enquanto o marido e a filha mais nova dormiam, ela prendeu os cabelos, passou batom, vestiu roupa de sair e se atirou do décimo andar.

Na década de 60 as brasileiras tinham em média cinco ou seis filhos. Criança pequena morrer era acontecimento tão freqüente que, ao tirarmos a história, a primeira pergunta era quantos filhos haviam dado à luz e a segunda, quantos deles permaneciam vivos.

Raros os plantões em que não perdíamos duas ou três crianças, às vezes morriam cinco ou seis. Eram tantas que no caminho para casa ficava difícil lembrar do rosto de todas.

O último médico visitado, um professor de faculdade, chegou a aconselha-lo:
- Procure um psiquiatra, os exames não mostram nenhuma etiologia orgânica. Você tem quarenta e dois anos, nunca se casou, mora com a mãe até hoje, é provável que essas dores sejam conseqüência da somatização de problemas psicológicos. O inconsciente sexual se materializa nas mais variadas apresentações patológicas.
Era câncer.

Quando saímos, comentei com meu colega que era conduta medieval deixar uma pessoa atingir aquele estado deplorável, com a metade dos níveis aceitáveis de hemoglobina, pelo simples fato de apresentar uma doença incurável. Ele concordou inteiramente, mas lembrou que no dia seguinte o chefe do serviço reclamaria: “De hoje em diante, toda vez que esse doente passar mal, a família vai despencar em nossa porta. Já pensou se todos fizerem o mesmo? O hospital vira depósito de gente desenganada, não sobra leito para operar mais ninguém.”

Tive vontade de percorrer as faculdades de medicina para dizer aos alunos, no primeiro dia de aula, o que nunca ouvira de meus professores: na medicina, curar é objetivo secundário, se tanto. A finalidade primordial de nossa profissão e aliviar o sofrimento humano.

A angústia causada pela impossibilidade de comprovar por meios racionais se existe vida depois da morte acompanha a humanidade desde seus primórdios. Imaginar que nos transformaremos em pó e que capacidades cognitivas adquiridas com tanto sacrifício se perderão irreversivelmente é a mais dolorosa das especulações existenciais.
Consideramos a vida uma dádiva da natureza, e nosso corpo, uma entidade construída à imagem e semelhança de Deus, exclusivamente para nos trazer felicidade, atender aos nosso caprichos e nos proporcionar prazer.
Essa visão egocentrada de quem “não pediu pra nascer” faz de nós seres exigentes, revoltados, queixosos, permanentemente insatisfeitos com os limites impostos pelo corpo e com as imperfeições inerentes à condição humana.
Seria lógico então, esperar que o aparecimento de uma doença grave, eventualmente letal, desestruturasse a personalidade, levasse ao desespero, destruísse a esperança, inviabilizasse qualquer alegria futura. Mas não é isso que costuma acontecer.
No ambulatório do Hospital do Câncer, quando perguntei a um maranhense iletrado, pai de quinze filhos e rosto marcado pelo sol, se a doença havia lhe trazido alguma coisa de bom ele respondeu:
- O cavalo fica mais esperto quando sente vertigem na beira do abismo.