terça-feira, novembro 06, 2007

Camuflagens

Saldo

Dir-se-á que cara hambúrguer engolido é puxado da boca de uma criança faminta
e que, cada vez que um americano senta em um restaurante em que haja menos que 11% de negros, ele está roubando uma cadeira.

A culpa regula as relações sociais que se reduzem a um cálculo de perdas e danos
A vantagem é que a culpa poderia ser então ser solucionada: por reparações, indenizações, compensações.

O meu hambúrguer priva o menino de Biafra, mas posso, e devo, lhe mandar farinho, ou então dar preferência aos biafrenses em minha empresa.

Não estamos com ninguém, nem contra ninguém, só trazemos sopa.

Justificativas

Horkheimer tinha razão: de fato, desde a aliança contra a ameaça nazista, o Ocidente nunca mais conseguiu acreditar nas razões pelas quais ele mesmo justifica seus conflitos.

Se invocarmos princípios objetivos, externos a nós mesmos, eles aparecerão como camuflagens, pretextos, desculpas para razões não confessadas, individuais, interesseiras.

Irremediavelmente céticos, não sabemos acreditar nos valores objetivos que eventualmente invocamos. Por outro lado, experimentamos a fragilidade de escolhas cuja razão seria apenas nossa decisão, nossos interesses individuais.
Nosso agir é: ou suspeito, ou desprezível por nós mesmos.

Diálogo

As leis que regram nossas relações sociais são necessárias e imprescindíveis, mas sempre opináveis.

É mais justo queimar o sinal vermelho que ser assaltado, ou então sonegar o imposto de renda do que pagar um imposto que achamos absurdo.

(...) Em outras palavras, só somos "racionais", no sentido moderno, à condição de sermos razoáveis, e, para ser razoável, precisa tornar negociável toda a exigência, reinvindicação, esperamça. Precisa, em suma, que todo valor seja suscetível de concessões, arranjos, compromissos.

Amor

"Eu amo" é indiscutível, por ser, linguisticamente, performativo.
A prova que "nós amamos" é a nossa declaração, portanto, irrefutável.
Atrás dela se pressupõe uma efusão tão íntima que sua sinceridade só pode ser decidida por quem declara.

Desse modo, nos casamos e vivemos juntos porque nos amamos.
Qualquer escolha fundada em outro critério é interesseira ou hipócrita.

(...) os laços são mais precários, os casamentos duram menos e, quando duram, podem doer mais (tipo "nossa vida é um inferno, a gente não se entende, mas ficamos juntos porque nos amamos").

Acabamos assim querendo as crianças tão parecidas conosco, em sua felicidade forçada, que as transformamos em caricaturas de nossos devaneios.

Quem são Eles?

O capitalismo continua nos aparecendo como a maléfica invenção dos capitalistas
e nossas dificuldades subjetivas aparecem mais frequentemente como a soma aritimética das injustiças que os pais fizeram em nossa infância indefesa.
O mundo é o teatro das injustiças que sofremos. Somos sempre vítimas.

(...) a felicidade parece depender da modificação mecânica ou química do real do corpo.

Desde o século passado, com o movimento higienista, a medicina veio progressivamente substituir a ordem moral religiosa periclitante em uma sociedade cada vez mais laica. As práticas higiênicas de vida comum, por exemplo, vieram regrar a convivência social. Aos poucos, a boa saíde se constitui como muito mais do que um componente do bem-estar: como um dever ético.

O indivíduo autônomo de nosso tempo não é um conjunto preestabelecido de obrigações simbólicas, por isso ele é obrigatoriamente narcísico: sua consistência subjetiva, em princípio, não é peso da herança recebida, mas o fruto de suas contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros.

Mas os outros são muitos e talvez nem saibam direito o que gostariam que fôssemos.

E nós?

Pois a idéia de termos uma vida verdadeira escondida, mas que coincidiria com os sonhos de todos, é uma fantasia básica em uma cultura narcísica. Ela resgata nossa miséria: não gostam de nós porque não sabem o que somos.

Em uma cultura individualista, não é a tradição, nem a história, mas a ficção o grande repertório ético em que se inventam, se canonizam e se propõe condutas.

A autonomia individualista, com todas as suas consequencias, é nossa forma paradoxal de obedicência à cultura à qual pertencemos.

Mas preferimos denunciar nosso hedonismo narcísico como falso e alienante a encará-lo como nossa realidade e verdade cultural.

Crônicas sobre o Individualismo Cotidiano - Contardo Calligaris