sábado, novembro 17, 2007

O Segundo Sexo

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A experiência erótica é uma das que revelam ao ser humano, da maneira mais pungente, a ambigüidade da sua condição; nela eles se sentem como carne e como espírito, como sujeito e como outro.

A burguesia inventou nestes últimos anos um estilo épico: a rotina assume um aspecto de aventura, a fidelidade, o de uma loucura sublime, e tédio torna-se sabedoria e os ódios familiares são a forma mais profunda de amor.

Pretende-se por vezes que o próprio silêncio é sinal de uma intimidade mais profunda que qualquer palavra; e por certo ninguém pensa em negar que a vida conjugal crie uma intimidade: nem por isso essa intimidade deixa de cobrir raivas, ciumes, rancores.

Não há sentimentos neutros e a ausência de amor, o constrangimento, o tédio, engendram menos facilmente uma amizade terna do que o rancor, a impaciência, a hostilidade.

Há certamente maior número de violações cometidas no casamento que fora do casamento. São muitos os casos de ferimentos infligidos a mulheres pelo pênis durante o coito; as caisas era, a brutalidade, a embriaguez, uma posição errada, uma desproporção dos órgãos.

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O amor ocupa na vida feminina menor lugar do que sempre se pretendeu. Marido, filhos, lar, prazeres, vida mundana, vaidade, sexualidade, carreira, são mais importantes. Quase todas as mulheres sonharam com "o grande amor": conheceram sucedâneos deste, aproximaram-se dele; sob aspectos de figuras inacabadas, magoadas, irrisórias, imperfeitas, mentirosas, ele as visitou; mas muito poucas lhe consagraram realmente a existência.

Ao invés de convidá-la a lutar por sua conta, dizem-lhe que basta deixar as coisas correrem para alcançar paraísos encantadores; quando percebe que foi vítima de uma miragem, é tarde demais, suas forças esgotaram-se na aventura.

Os psicanalistas afirmam de bom grado que a mulher busca no amante a imagem do pai; mas é por ser homem e não por ser pai que ele deslumbra a criança, e todo homem participa dessa magia.

A mulher não deseja reencarnar um indivíduo no outro e sim ressucitar uma situação: a que conheceu menina, no abrigo dos adultos. O que ela almeja é reencontrar um teto sobre a cabeça, muros que lhe escondam seu abandono no mundo, leis que a defendam contra a sua liberdade.

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O homem com seus músculos duros, sua pele áspera, seu cheiro forte, seus traços grosseiros, não lhe parece desejável, inspira-lhe até repulsa.

Ela deseja carícia nos seios, nos lábios, talvez um gozo conhecido ou pressentido entre as coxas e eis que um sexo macho se introduz e o amor assume o aspecto de uma operação cirúrgica.

Por certo o sexo do macho não é um músculo estriado que a vontade comanda; não é relha de arado nem espada mas tão-somente carne; entretanto, o homem imprime-lhe um movimento voluntário; vai, vem, pára, recomeça.

O sexo feminino é misterioso até para a própria mulher, é escondido, úmido, sangra todos os meses, por vezes é cheio de humores.

Muitas vezes, as circunstâncias levam-na a tornar-se presa de um homem cujas carícias a comovem mas que ela não tem prazer em olhar nem em acariciar por sua vez.

Braços enlaçando um corpo podem ser refúgio e proteção, mas encarceram também e abafam.

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É rendendo-se que o desejo se perpetua. Mas o equilíbrio entre o ardor e o abandono é fácil de destruir.

Uma carícia pode tornar-se uma tortura, um suplício dar prazer. Abraçar conduz facilmente a morder, beliscar, arranhar; essas condutas exprimem um desejo de fusão, não de destruição, e o sujeito não quer humilhar-se ou renegar-se, mas unir-se.

Seu corpo não projeta nenhuma conclusão nítida do ato amoroso, e é por isso que o coito nunca finda inteiramente: não comporta um fim.

Certos espamos localizados na vagina ou no conjunto do sistema genital, ou emanando de todo corpo, podem constituir uma solução. Em certas mulheres eles se produzem bastante regularmente e com suficiente violência para serem assimilados a um orgasmo; mas uma amante pode também encontrar no orgasmo masculino uma conclusão que a acalma e a satisfaz. E pode acontecer também que e maneira contínua, sem choque, a forma erótica se dissolva calmamente.

É um corpo que exprime reações que a mulher se recusa a assumir, ele lhe escapa, ele lhe trai. No entanto, ele é também o corpo que contempla com deslumbramento ao espelho, é promessa de felicidade, estátua viva, ela o modela, enfeita, exibe.

Muito raramente ela se satisfaz completamente, mesmo se conheceu o apaziguamento do prazer não fica definitivamente liberta do feitiço carnal; sua perturbação prolonga-se tornando-se sentimento.

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"O criador das zonas erógenas trabalha contra si próprio: cria insaciáveis. Não haveria neurose nem psicose se estivesse persuadido que fazer amor é um ato tão indiferente quanto o de comer, urinar, defecar, dormir..." (Dr. Grémillon)

Consideram perversas e debochadas as mulheres que vivem de seu corpo, não os homens que as usam.

Se não é pérfida, fútil, indolente, a mulher perde a sua sedução. Na Casa das Bonecas, Helmer explica o quanto o homem se sente forte, justo, compreensivo, indulgente, quando perdôoa as faltas pueris da frágil mulher.

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Habilmente faz as perguntas no momento em que não há tempo para respostas sinceras, ou então em que as circunstâncias as impede, faz troféus das respostas arrancadas e, na falta de respostas, faz os silêncios falarem.

Uma mulher normal acaba sempre sendo vencida pela verdade, e reconhecendo que não é mais amada. Mas, enquanto não é acuada a essa confissão, trapaceia sempre um pouco. Mesmo no amor recíproco há entre os sentimentos dos amantes uma diferença fundamental que ela se esforça por massacrar.

Atormentada, arrisca-se a torna-se um fardo para aquele com quem sonhava, não podendon ser indispensável, torna-se inoportuna, odiosa. É isso também uma tragédia muito comum.

Uma mulher, ainda que orgulhosa, faz-se meiga, passiva, manobras, prudências, ardis, sorrisos, encantos, são suas armas.

"Detesto os homens que dormem. Debruço-me sobre eles com minhas más intenções. Só reclamava dele uma bolha de presença. Não as tive. Detesto este meu homem dormindo, capaz de criar para si uma paz que me é estranha." Viollete Leduc.

Simone de Beauvoir- O Segundo Sexo