Uma matéria da Revista da Semana, de 1937, é exemplar na forma de abordar o “tema”:
“Todas têm ódio às moças que se casam. Possuem, em maior ou menor dose, o instinto da maldade.
A história de milhares de tragédias conjugais nasce dessas almas torvas, às quais tudo se deve perdoar pelo muito que penaram.
Casais felizes devem fugir das solteironas como o diabo da cruz.
A Medicina sabe que os enfermos de certas doenças contagiosas têm um prazer satânico em transmitir sua doença às pessoas sadias.
Existe, na psicopatologia das solteironas, fenômeno análogo”.
O tom, dramático e antiquado, pode ter mudado, mas a essência dessas idéias, infelizmente, ainda permanece viva.
Sob a lógica do “familismo”, que pressupõe o par e o casamento com lugares privilegiados de saúde e felicidade,
a mulher “só” é percebida como solitária e infeliz, frustrada e insatisfeita,
já que sua existência seria medida e avaliada segundo a perspectiva da mulher casada ou que possui um par masculino.
A mídia, por sua vez, continua, “traduz e reinterpreta noções inspiradas nos discursos acadêmicos da demografia ou dos estudos de população e outras áreas disciplinares”.
Uma atenção especial é igualmente concedida, na mídia, ao que aparece de modo incipiente ou está ausente dos estudos de população: a idéia de sociabilidade como marca de um certo estilo de vida das pessoas que moram sozinhas e a expressão “novas solteiras”, caracterização aparentemente restrita a essas produções.
“Mídia e demografia apresentam confluências nas análises sobre a necessidade de alguma forma de intervenção externa para favorecer o encontro par/marido,
chegando mesmo a fazer sugestões explícitas.
Assim, a demografia, mesmo concedendo o conceito do ganho das mulheres, salienta “a problemática da mulher madura, com mais de 30 anos, colocando-a como vítima do excedente de mulheres que disputam, em desvantagem com as mais jovens, reforçando a necessidade do par”. É a “pirâmide da solidão”.
O conceito fala das chances decrescentes de mulheres mais velhas de se casarem considerando-se as normas sociais vigentes, nas quais os homens procuram parceiras mais jovens, o que traz para as outras faixas etárias superiores o prognóstico de que continuem a viver sozinhas.
“Considerar como fatalidade uma mulher que não se casa, qualquer que seja a motivação, denota a centralidade dada ao estatuto do casamento como um valor em si mesmo. A eleição pelo casamento envolve estratégias políticas”.
Se o homem solteiro não é questionado, já que sua “solteirice” é presumida como fase transitória livremente escolhida, a “solidão” feminina, por sua vez, é reiteradamente acentuada, nos estudos mais diversos, a partir das informações estatísticas e das noções demográficas.
“A ‘pirâmide da solidão’ passou a ser tratada como verdade inquestionável, uma matriz geradora ou categoria explanans, usada para explicar fenômenos distintos, como o machismo brasileiro, a ‘solidão’ de jovens sem namorados, de idosas viúvas e, até mesmo, o aumento de venda de vibradores em sex shops.”
Contra a imagem de ‘solitária’ criou-se a figura da mulher executiva, liberada e auto-suficiente, que presumivelmente não ‘sofre’ de solidão ou dela escapa, refugiando-se no trabalho e no consumo.”
Elas agora seriam “independentes”, “estudadas”, “bem-sucedidas”, “viajadas”, “malhadas”, “elegantes”, com “intensa vida social”. Assim, continua a autora, essas “novas solteiras” estariam colhendo os frutos das conquistas da revolução feminina e feminista e suas falas conferem positividade à “solteirice”.
Dessa forma, a noção mais desenvolvida nos textos da mídia é a da nova solteira que está à “procura de”, mas, de certo modo, tanto faz se encontrar ou não um parceiro.
Esse tipo de mulher seria enquadrada na categoria de “satisfeita resignada”, mulher que deseja, mas não quer abrir mão de certas conquistas para ter a seu lado um “sapo qualquer”.
Só recentemente, porém, “o trabalho feminino não aparece como um último recurso, mas como uma exigência individual e identitária, uma condição para realizar-se na existência, um meio de auto-afirmação”, afirma Lipovetsky.
“Se o single lifestyle e as residências de uma pessoa continuarão a se impor como uma tendência, não tenho uma conclusão, mas, talvez, as solteiras estejam reinventando a ‘solidão’, transformando-a em ‘aventura’”.
Nem só, nem mal acompanhada.
Mulher solteira não procura mais
Estudo sobre "mulheres sós"
Carlos Haag