Há uma outra idéia segundo a qual a vida da gente pode (e talvez deva) ser vivida como uma narração.
Não tanto para que ela se transforme num roteiro mirabolante,
mas para que nosso cotidiano (por humilde e banal que seja)
assuma uma relevância e uma intensidade que o tornem digno de ser vivido.
Não fica claro?
Faça a experiência: passe três horas de seu dia acompanhando suas ações de sempre, seus pensamentos, seus encontros e suas rotinas com uma narração mental detalhada, como se você fosse o protagonista de um romance que está sendo escrito enquanto você age.
Que o resultado seja um atormentado monólogo interior ou uma seca descrição, de qualquer forma, seu mundo (externo e interno) será transformado.
Se você prolongar a experiência (redigindo um diário, em forma de blog ou num caderno, pouco importa),
a narração passará a comandar sua vida:
aos poucos, suas escolhas serão decididas em função do texto que você está escrevendo.
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A descoberta de Sade: o poder assombra a fantasia erótica.
Eis como a coisa funciona, esquematicamente.
Um sujeito se define pela rede de relações que lhe atribui um lugar no mundo.
Na modernidade, as relações que mais importam não são as hierarquias sociais estabelecidas:
o sujeito se relaciona, antes de mais nada, por amor e por paixão, ou seja, por livre escolha.
A conseqüência disso não é um mundo em que o amor e a paixão substituiriam a vontade de dominar.
Ao contrário: o amor se torna um teatro do poder
e a paixão encontra no domínio ou na submissão um extraordinário recurso para a excitação sexual.
Reciprocamente, o exercício do poder é contaminado por modalidades de prazer e de gozo aprendidas na cama, ou seja,
por um erotismo violento, sombrio e, em geral, envergonhado.
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(...) Deve ser por isso que uma parte relevante dos conselhos para um verão namoradeiro são, de fato, sugestões estéticas:
como perder aqueles cinco quilos em três semanas,
como achatar o estômago, como esculpir os abdominais,
como tornear as pernas e arrebitar as nádegas,
como conseguir um bronzeado natural e dourado,
qual maquiagem usar na praia, como escolher a sunga ou o biquíni certos,
como desembaraçar o cabelo depois da água salgada,
como vestir-se nas baladas da noite e por aí vai.
Por que não?
Afinal, para encontrar um namoro, é preciso seduzir, não é?
Certo, mas não deixa de me surpreender que os conselhos para encontrar companhia sejam quase sempre dicas para nossa aparência.
Ou seja, a vontade de achar alguém com quem valha a pena ficar (ao menos um pouco) se traduz em anseios narcisistas.
Saímos à procura de um outro para beijar e acabamos embaciando o espelho.
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Contardo Calligaris