domingo, abril 27, 2008

"Eu"

Nesse quadro a sinceridade se separa, até conceitualmente, da
verdade e se torna um valor diferente e hierarquicamente superior
.

É certo que hoje sabemos apreciar a intenção sincera de quem fala e escreve,
sua autenticidade, mesmo sabendo, por outro lado,
que factualmente o que ele/ela diz ou escreve é falso.
Ser sincero, autêntico, é um valor em si, em nada subordinado à verdade factual.

À primeira vista, uma polêmica parece viva entre os que concebem, tradicionalmente, a
autobiografia como algum tipo de “representação” do sujeito por si mesmo e, no extremo oposto, os desconstrucionistas, como por exemplo De Man (1979), para quem o sujeito nada é senão um efeito de seu próprio texto.

A oposição é provavelmente em grande parte artificiosa(...).

Em um brilhante ensaio, Elisabeth Bruss (1976) propõe a melhor solução para esse
debate.
Ela considera qualquer produção autobiográfica moderna (autobiografia narrativa ou não, journal etc.) como um “ato autobiográfico”, ou seja, como um performativo.
O sujeito que fala ou escreve sobre si, portanto, não é o objeto (re)presentado por seu discurso reflexivo, mas tampouco é o efeito, por assim dizer, gramatical de seu discurso.
Falando e escrevendo, literalmente, ele se produz.
Narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida.
Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade.
O ato autobiográfico é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo.


Essa concepção é confirmada pelo fato de que a modernidade não pára de descrever o
ato autobiográfico como ato suscetível de modificar diretamente a vida do sujeito. Que essa era aidéia original da psicanálise, não há dúvida.

Nas últimas décadas proliferaram, particularmente nos Estados Unidos, tratados de autoajuda especificamente destinados a auxiliar o leitor a escrever seja sua autobiografia, seja seu diário íntimo.
Na escolha ao acaso que fiz entre esses tratados, invariavelmente a escrita
autobiográfica é apresentada como uma conduta propriamente autoterapêutica.


Enfim, vale para todos a famosa frase de Anaïs Nin: “Começando um diário, já
concordava com a idéia de que a vida seria mais suportável se eu a olhasse como uma aventura e um conto. Eu me contaria a história de uma vida, e isso transmuta em uma aventura os percalços que nos sacodem.”

Como diz William Zinsser no bonito ensaio que abre a coletânea por ele
editada (Zinsser, 1987: 24):
“O escritor de um ‘memoir’ deve se tornar o ‘editor’ da sua própria
vida.” Ele é quem rearranja ou melhora o que já é um texto.


(...)
A verdade do sujeito mudou de forma.
Portanto, sua vida e seu ato autobiográfico tendem a constituí-lo com uma imagem que vive no e pelo olhar dos outros.

Verdades de autobiografias e diários íntimos
Contardo Calligaris