A obrigação da confissão já está tão profundamente incorporada a nós que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage.
Parece-nos, ao contrário, que a verdade, na região mais secreta de nós próprios, não "demanda" nada mais que revelar-se.
Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado;
é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder,
pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor,
mas instância que avalia a confissão, pune, perdoa, consola, reconcilia.
Dentre seus emblemas, nossa sociedade carrega o do sexo que fala.
Do sexo que pode ser surpreendido e interrogado e, contraído e volúvel ao mesmo tempo,
responde ininterruptamente.
Presas de uma imensa curiosidade pelo sexo, obstinados em questioná-lo, insaciáveis em ouvi-lo e ouvir falar nele, prontos a inventar todos os anéis mágicos que possam facilitar sua discrição.
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De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia das energias.
Do outro, o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que induz.
O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie.
Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações.
Deve-se ver a burguesia, a partir do século XVIII, empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir para si, a partir dela, um corpo específico, um corpo "de classe" com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça: autossexualização do próprio corpo, encarnação do sexo em seu corpo próprio, endogamia do sexo e do corpo.
É um agenciamento político da vida, que se constitui, não através da submissão de outrem, mas numa afirmação de si.
E longe de acreditar ser de seu dever amputar o corpo de um sexo inútil, desgastante e perigoso, já que não estava voltado exclusivamente para a reprodução, pode-se dizer, ao contrário,
que a classe que se tornava hegemônica se atribuiu um corpo a ser cuidado, protegido, cultivado, preservado de todos os perigos e de todos os contatos, isolado dos outros para que mantivesse seu valor diferencial, e isso outorgando-se entre outros meios, uma tecnologia do sexo.
O capitalismo só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
Assim, no processo de histerização da mulher, o "sexo" foi definido de três maneiras: como algo que pertence em comum ao homem e à mulher; ou, como o que também pertence ao homem por excelência e portanto, faz falta à mulher; mas, ainda, como o que constitui, por si só, o corpo da mulher, ordenando-o inteiramene para funções de reprodução e perturbando-o continuamente pelos efeitos dessa mesma função: a histeria é interpretada, nessa estratégia, como o jogo do sexo enquanto "um" e "outro", tudo e parte, princípio e falta.
Sexualizando-se a infância, contituiu-se a idéia de um sexo marcado pelo jogo essencial da presença e da ausência, do oculto e do manifesto; a maturbação com os seus efeitos que lhe atribuem revelaria, de maneira privilegiada, este jogo da presença e da ausência, do manifesto e do oculto.
É o dispositivo da sexualidade que, em suas diferentes estratégias, instaura essa idéia "do sexo"; e o faz aparecer, sob as quatro grande formas- da histeria, do onanismo, do feitichismo e do coito interropido- como sendo submetido ao jogo do todo e da parte, da ausência e da presença, do excesso e da deficiência, da função e do instinto, da finalidade e do sentido, do real e do prazer.
Não se deve imaginar uma instância autônoma do sexo que produza, secundariamente, os efeitos múltiplos da sexualidade ao longo de toda a sua superfície de contato com o poder. O sexo é o contrário, o elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais interior, num dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas captações dos corpos, de sua materialidade, de suas forças, suas energia, suas sensações, seus prazeres.
Com a criação desse elemento imaginário que é "o sexo", o dispositivo de sexualidade suscitou um de seus princípios internos de funcionamento mais essenciais: o desejo do sexo- desejo de tê-lo, de aceder a ele, de descobri-lo, liberá-lo, articulá-lo em discurso, formulá-lo em verdade.
Ele constitui "o sexo" como desejável.
E é essa desirabilidade do sexo que fixa cada um de nós a injunção de conhecê-lo,
é essa desirabilidade que nos faz acreditar que afirmamos contra todo poder os direitos de nosso sexo quando, de fato,
ela nos vincula ao dispositivo de sexualidade que fez surgir,
do fundo de nós mesmos, onde acreditamos reconhecer-nos, o brilho negro do sexo.
História da Sexualidade- Vontade de Saber
Michel Foucault