Em algumas cidades, o crime e a violência são como um artifício ou um idioma para se pensar sobre o "outro".
Quando se culpa a presença de nordestinos em São Paulo ou de pobres negros e favelados em outras capitais, ou ainda quando se transfere a responsabilidade de uma cidade para a outra, como foi o caso das imagens do Rio de Janeiro veiculados na impensa de outros estados.
O quadro é assim, paradoxal. Os que mais padecem enquanto vítimas da violência difusa e privatizada são também os mais apontados como os seus agentes.
A pobreza é determinante: ora da vitimização, ora da ação violenta.
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A caracterização da sociedade do pós-guerra caracteriza-se pela importância cada vez maior das atividades de lazer e consumo na definição de novas identidades.
As práticas dos hábitos mais imediatos na busca por prazer, seja no jogo, nas drogas, ou na diversão, ganham maior importância na vida de vários setores da população, especialmente os mais jovens, o que torna lucrativo o investimento nos negócios que exploram o seu consumo, organizando atividades criminosas em torno das que são proibidas pela lei.
Se a riqueza se acumula no topo da pirâmide, os ricos invisíveis dos desastres ecológicos, do desemprego, dos efeitos perversos da revolução sexual, dos remédios falsificados, adulterados e fora de prazo, assim como o uso abusivo das substâncias chamadas "drogas" e proibidas, ou mesmo de armamentos portáteis mas extremamente eficazes na destruição.
Por isso, é tão difícil entender a violência e lidar com ela: ela está em toda parte, não tem atores sociais permanentemente reconhecíveis, nem "causas" facilmente delimitáveis e inteligíveis.
A inflação galopante, da qual o país padeceu até 1994, retirou a credibilidade do governo, pois sempre foi considerada um "roubo" pelos assalariados, fornecendo justificativas "todos estão roubando". Com o mesmo imaginário, outros começaram a cometer crimes econômicos cada vez mais ousados, auxiliados pela dificuldade crescentes à contabilidade e ao controle sobre os orçamentos públicos provocados pela inflação.
Tal quadro monetário, portanto, facilitou a corrupção e a lavagem de dinheiro, tão necessárias para o estabelecimento das conexões criminosas.
Não basta explicar o envolvimento com o crime por meio da vontade ou necessidade iniciais de ajudar a família na complementação de renda ou em função da falta de oportunidade no mercado de trabalho.
"Pela sensação", "pela emoção", "para fazer onda", "para aparecer no jornal".
O crime se justifica por conta de rixas infantis, por um simples olhar atravessado, por uma simples desconfiança de traição ou ainda apenas porque estavam lá no momento do tiroteio.
Se uma das funções das guerras entre nações foi resolver a questão do excesso populacional dos países envolvidos, essa nova guerra privatizada parece contribuir para eliminar uma parcela cada vez mais considerada dos chamados ora "excedentes", ora "marginais", ora "excluídos".
A ilusão do "dinheiro fácil", que também atrai tantos jovens pobres, revela a sua outra face: o jovem que se encaminha para a carreira criminosa enriquece, não a si próprio, mas a outros personagens, que quase sempre permanecem impunes e ricos.
Como o tema das drogas tem forte carga moral e emocional, são feitos discursos que apresentam a droga como diabólica para absolver o acusado de usá-la ou traficá-la, justificando que é pessoa confiável, e que não deve ter envolvimento com tal substância nefasta.
Nesse novo cenário, a pobreza adquire novos significados, novos problemas e novas divisões.
A privação não é apenas de bens materiais. A privação é material e simbólica a um só tempo. E a exclusão tem que ser entendida também nesses vários planos.
Para não dizer que eu não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil.- Alba Zaluar
História da Vida Privada no Brasil