Que instrumento é mais eficiente para ficcionar diariamente a vida social do que a televisão? Doméstica como uma lâmpada, cotidiana como o pão, onipresente e onisciente como Deus, a televisão é tecnicamente capaz de fabricar, para a vida cotidiana, sua dose de fantasia.
A televisão produz mitos para a vida moderna na velocidade em que o McDonald's produz hambúrgueres.
Produz e reproduz ficção política com tal eficiência que se torna capaz de recobrir todo o campo de forças em que se jogam os interesses "reais" que afetam diretamente a nossa vida.
Agora a indústria não fabrica apenas coisas palpáveis: dedica-se a produzir os signos que encarnam sua representação.
Para onde quer que voltem os homens hão de deparar sempre com imagens que buscam representá-los para si próprios. A cultura deixa de ser referência de alteridade para tornar-se espelho do que nos é mais íntimo e familiar.
Para Fredric Jameson, "a televisão colonizou o inconsciente, ocupando o lugar imaginário do outro".
Nos hospitais psiquiátricos encontram-se internos que, nos momentos de surto, tentam destruir os aparelhos de tevê. Acreditam que os locutores de telejornais lhe dão ordens, que os personagens das novelas os perseguem e as publicidades contêm mensagens cifradas que lhe dizem respeito.
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Sempre é interessante ver de onde as pessoas retiram assunto para conversar, em especial, a prosa mole, a conversa sem maiores compromissos, mas que é fundamental, porque formata identidades.
O contraste entre noticiários e novelas, que chega ao ponto de se tornarem, os primeiros, obras de ficção, enquanto as segundas exercem papel crítico que tem, eventualmente, forte dose de realismo.
Quem acompanhou a televisão no final dos anos 1980, via com freqüência algum importante político do interior do país ser elogiado no noticioso para, daí a meia hora, na novela (digamos, Roque Santeiro), alguém com traços próximos aos seus, coronel, prepotente, ser apontado como responsável pelas mazelas do país.
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Houve uma época em que o valor das fotos de imprensa era avaliado segundo a qualidade do enquadramento, da luz, do foco e da revelação. Em seguida, tornaram-se interessantes as fotos mal enquadradas, meio fora de foco. A imperfeição técnica e estética é o sinal, até mesmo a garantia, de que as fotos não foram montadas, de que foram tiradas na emergência, no meio do perigo.
Durante a campanha de 2003, no Iraque, podiam-se ver jornalistas de televisão entrevistando um ferido durante seu translado de maca, e, em seguida, emprestando-lhe o telefone para que ele pudesse falar (ao vivo, por definição) com seus parentes nos Estados Unidos.
Diante das imagens mais terríveis, nada podemos fazer, a não ser nos surpreender pelo fato de que alguém, no auge da tragédia, no momento exato, in loco, escolhera esse gesto: pegar a máquina, multiplicar as tomadas, tirar fotos. O fotógrafo, em sua posição, representa: "faça como se eu não estivesse aqui".
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Muito Além do Espetáculo- Adauto Novaes (organizador).