De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas a que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
Janelas do meu quarto.
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)
As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem.
Eu? Mas sou eu mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?
Outra vez te revejo.
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminhos sem fim...
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam-
Todas aquelas que me arrependo e me culpo- ;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam -
Todas aquelas que me arrependo e me culto--.
O que só agora vejo que deveria ter feito
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido.
Se em certa conversa tivesse tido as frases que só agora, no meio sono, elaboro...
Mas os outros não sentiriam isso também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
A sutileza das sensações inúteis
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Tudo isso faz um cansaço, este cansaço, cansaço.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
E a memória de qualquer coisa de que não me lembro esfria-me a alma.
A ferida dói como dói.
E não em função da causa que a produziu.
Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou.
Poesias de Álvaro de Campos-
Fernando Pessoa