segunda-feira, janeiro 14, 2008

Passagem das Horas

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres.

De tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de sair para fora de todas as casas,
de todas as lógicas e de todas as sacadas,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs.

Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
seja uma multidão ou uma idéia abstrata.

Transbordei, não fiz senão extravazar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui soutener de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!

Ser sincero contradizendo-me a cada minuto.
Orgia intelectual de sentir a vida!

Eu, o investigador solene das coisas fúteis
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso
Que tantas vezes me sinto real como uma metáfora
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
Eu, a infelicidade- nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Passagem das Horas- Álvaro de Campos.
Fernando Pessoa.