A TV capta, expressa e constantemente atualiza as representações de uma comunidade nacional imaginária.
Ironicamente, esse espaço público surge sob a égide da vida privada.
Não por coincidência, o programa de maior popularidade e lucratividade da televisão brasileira é a novela.
Identidades mascaradas, troca de filhos, pais desconhecidos, heranças repentinas, ascensão social via casamento estão presentes de maneira recorrente.
Há também espaço para "merchandising social" em novelas como Explode Coração (1995), que abriu espaço para a divulgação do trabalho das ongs e também para a presença de mães das crianças desaparecidas com cartazes que divulgavam as características de seus filhos, ou o Rei do Gado (1996), com suas referências ao Movimento dos Sem-Terra e a presença de dois senadores da República em velório do senador da ficção.
A primeira novela, ainda não diária, da televisão braileira, Sua Vida Me Pertence (1951), chamou atenção por um beijo ardente. Vinte anos depois o beijo ainda encarnava a sensualidade máxima das novelas.
Flertando com o universo do prazer, do sexo antes do casamento, livre de filhos e obrigações legais, da separação como saída para casamentos infelizes, com a legitimidade das segundas uniões, com vida profissional e independência financeira para a mulher,com tecnologias reprodutivas, as novelas foram sucessivamente atualizando representações da mulher, das relações amorosas e da família.
No premiado seriado Malu Mulher (1975), o orgasmo é insinuado pela primeira vez, por meio da mão fechada que se abre como em um espamo.
Novela é torcida.
Pesquisas de opinião, revistas especializadas em comentários e fofocas sobre as novelas, cadernos especiais de jornais diários, programas de rádio e de televisão, cartas de fãs, trilhas sonoras, grifes de roupa e anúncios comerciais com atores pertencentes ao elenco de novelas que estão no ar são algum dos mecanismos atuantes que alimentam todos os dias as conversas sobre a novela.
Muitos telespectadores assistem aos capítulos já tendo uma certa idéia do que vai acontecer. A dose reduzida de suspense não abala o interesse em verificar como exatamente vão acontecer as coisas.
Assuntos como aborto ou casais homosseuxais são percebidos como tabu por uns, mas não por outros.
A novela representa o cotidiano de uma sociedade mais branca e mais rica que a brasileira.
É como um fio invisível do qual poucos se orgulham mas que perpassa a sociedade e aponta um universo de segredos íntimos compartilhados. Ela oferece a visão indiscreta do cotidiano de uma certa classe média alta, urbana, modena, glamourosa e idealizada, tal como vista de fora por um estranho.
É um reflexo caricatural dos gostos e preocupaçõs que ganha estatuto de realidade; se torna referencial para escolha de móveis, para balizamento de opiniões, para o exercício do direito de julgamento.
Um fenômeno descrito por alguns como "catártico".
É como se no mundo virtual do espetáculo, as discriminações seculares de classe e raça pudesse enfim der redimidas, enquanto a segregação social, econômica e cultural segmenta e divide a sociedade brasileira, a televisão aponta essa possibilidade de conexão, tornando-se uma porta para o mundo "real", no que diz respeito à visibilidade.
Diluindo fronteiras- a televisão e as novelas no cotidiano- Esther Hamburger.
História da Vida Privada no Brasil.