sábado, janeiro 19, 2008

Eu vejo tudo enquadrado, Remoto Controle...

Trata-se de uma sociedade baseada na contemplação passiva, em que os indivíduos, em vez de viverem em primeira pessoa, olham as ações dos outros.
Isto acontece não somente sob o plano televisivo, e não somente na publicidade, mas também sob muitos outros planos: na sociedade do espetáculo, também a política- incluindo uma boa parte daquela que se proclamava revolucionária-, a cultura, o urbanismo, as ciências baseiam-se sempre na distinção entre espectador e ator.

Convém então sublinhar, desde já, que a estrutura essencial da televisão não é somente ligada à imagem. A tevê não é essencialmente uma transmissão de imagens.

Além disso, hoje freqüentemente nem mesmo se assiste à televisão, mas ela serve somente para proporcionar um ruído de fundo; outras vezes, com o zapping, com as telas divididas em mais telas, com os spots publicitários ou com os videoclipes, não se vêem nem mesmo mais imagens no sentido normal, mas somente um amontoado de cores em movimento no qual não se presta nenhum atenção.

As mentiras dominantes da época estão em condições de fazer esquecer que a verdade pode ser vista também nas imagens.

A questão é: cada ouvinte e espectador está isolado em seu cubículo doméstico, onde o mundo lhe é fornecido em casa de maneira escolhoda pelos outros.

Nós homens não estamos na altura da perfeição dos nossos produtos; aquilo que produzimos excede nossa capacidade de imaginar e nossa responsabilidade; acreditamos que nos é lícito ou absolutamente obrigatório fazer tudo aquilo que podemos fazer. Existe uma grande discrepância entre os novos meios técnicos produzidos pelo homem e sua capacidade de sentir, pensar, imaginar- que continuam as mesmas.

Na época em que Adorno, Anders ou Debord fizeram suas observações, que até hoje parecem muito pertinentes, era a época das transmissões somente em preto-e-branco, em um só canal, transformado-se em seguida em dois, no máximo três, todos estatais, muito educativos e pouco diertidos, e que era transmitido somente da metade da tarde até meia-noite, no máximo, quando terminavam com o hino nacional: os mais jovens entre vocês só a muito custo acreditariam nisto.
Somente quem crescem em uma sociedade sem televisão foi capaz de notar a passagem e de observar as mudanças.

Na verdade, o ardor com o qual a televisão é aceita praticamente em todos os lugares e sempre não se explicaria se já não se encontrasse uma situação de forte tédio que faz parecer preferível olhar uma tela.

Para além dos conteúdos, o espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida.
O que caracteriza a televisão não é o fato de se olhar pra ela, mas de somente se olhar.
O olhar imóvel, a contemplação inerte: é isso que caracteriza o assistir à televisão e faz dela a expressão de uma sociedade na qual tudo é espetáculo.

Porque nem tudo é espetacular no sentido de colorido, sensacional, emocionante, vistoso- de fato, a televisão nem sempre sensacionaliza os eventos, às vezes ela banaliza e apresenta certas coisas de uma maneira mais inocente do que são na realidade.

Se Debord disse que tudo é espetáculo, foi pelo fato de que tudo, da política ao tráfico, das cidades à cultura, tende a produzir e reproduzir o indivíduo isolado, portanto, massificado, que se encontra em um estado de completa impotência diante do mundo que, na verdade, é resultado de suas ações.
Mas essa contemplação não é fruto de uma preguiça ontológica, mas o resultado de uma ordem social que vive graças à passividade. E é esse fato que liga a temática da televisão à da mercadoria.

O "feitichismo da mercadoria" não significa apenas uma adoração, um excessivo investimento afetivo sobre os bens de consumo, como o termo poderiam fazer pensar à primeira vista.
Significa que o destino de um produto, e de toda a produção, não depende de sua real utilidade para alguém, nem de sua beleza, nem de seu valor simbólico, mas da sua capacidade de ser vendido. Isso, todos nós sabemos.

Somente quando essa geração para a qual, desde pequena, a realidade era a que a televisão transmitia, e não aquela da qual eventualmente se podia fazer uma experiência direta, pois bem, somente quando essa geração chegou às cátedras pôde difundir-se a tese pós-moderna de que a realidade não existe, e não por acaso isto aconteceu nos países em que a desrealização da vida cotidiana estava já mais avançada.

Não é impossível que muita gente, se fosse deixada sem televisão, depois de um momento de perturbação, esfregaria os olhos perguntando-se de que sono despertou.

O Reino da Contemplação Passiva- Anselm Jappe.