Tua memória, pasto de poesia.
Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados.
Não está certo de ser amor.
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O mundo é talvez: e só.
Talvez nem seja talvez.
Meu bem, façamos de conta.
De sofrer, de lembrar, de fruir.
De escolher nossas lembranças
E revertê-las acaso se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
que é tudo como se fosse
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundo: idéias.
Deixemos o mundo aos outros.
Já que os querem gastar.
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Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
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Este é de resto o mal superior a todos:
a todos como a tudo estamos presos.
E se tentas arrancar o espinho de teu flanco,
a dor em ti rebate, a do espinho arrancado.
Nosso amor se mutila a cada instante.
A cada instante agonizamos
ou agoniza alguém sob o carinho nosso.
Ah, liberta-se, lá onde as almas se espelhem
na mesma frigidez de seu retrato, plenas!
É sonho, sonho.
ilhados, pendentes, circunstantes,
na fome e na procura de um eu imaginário
e que, sendo outro, aplaque
todo este ser em ser,
adoramos aquilo que é nossa perda.
Para amar sem motivo
e motivar o amor na sua desrazão.
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Alguns afetos recortam o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
(Não ser feliz tudo explica).
Restam sempre muitas vidas para serem consumidas
Na razão dos desencontros.
Opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só o amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei, nenhum, talvez, ou senão...
Esperança de prazer.
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Pois eterno é o amor que une e separa,
e eterno o fim (já começara, antes de ser),
e somos eternos,
frágeis, nebulosos, frustrados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória,
e lagoas de sono selam o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus da lenha jogados no galpão.
Amar, depois de perder.
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Carlos Drummond de Andrade- Claro Enigma.