A questão é esta: como foi que nossa experiência cotidiana se empobreceu a ponto de passarmos nosso tempo nos preparando para 15 dias por ano de pseudo-aventuras de férias obrigatórias?
Como aconteceu de o "luxo" deixar de ser uma forma suntuosa de gastar a vida e se tornar uma forma de poupá-la em vista de eventuais escapadelas no fim do ano ou nos feriados?
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Digo que a pergunta se apresenta "mais uma vez" porque a questão é hoje trivial e, ao mesmo tempo, persecutória.
É melhor ficarmos acordados até tarde pelo prazer da companhia ou voltar logo para casa e para a cama, já que, de manhã cedo, será a hora da esteira e da bicicleta?
Vamos transar no domingo à noite ou será que a segunda é um dia muito pesado?
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"Hoje não, amanhã tenho que levantar cedo."
"Antes do jantar não, vai estragar meu penteado."
A Ilha de Caras não é o castelo dos libertinos, mas apenas um estúdio fotográfico: mais cedo ou mais tarde, os excluídos da festa descobrem que não houve festa nenhuma, só poses.
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Obedecemos a uma proliferação de regras que são ditadas pelos progressos da prevenção.
Ninguém imagina que comer banha, fumar, tomar pinga, transar sem camisinha e combinar, sei lá, nitratos com Viagra seja uma boa idéia.
De fato, não é.
Mas, por trás dessa obviedade, esconde-se um estranho momento na história da moralidade.
Durante muitos séculos, constatamos que a carne era fraca e que o espírito tinha sérias dificuldades em conter seus ímpetos.
Ultimamente, encontramos uma solução elegante: delegamos à carne a tarefa de controlar a carne.
A experiência dos prazeres deveria ser contida porque é anti-higiênica, biologicamente nociva, ruim para o corpo.
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Uma piada que ouvi nestes dias resume a situação. Um fiel pergunta levando os olhos ao céu: "Senhor, quero entender, por favor: há ou não há vida após a morte? Há ou não há vida eterna?".
Depois de ele muito insistir, eis que, enfim, as nuvens se abrem, aparece um raio de luz e uma voz profunda responde: "Meu filho, essa coisa de vida eterna é muito complicada. Mas posso garantir que, se fizer exercício regularmente, parar de fumar e se alimentar direito, você viverá três ou quatro anos a mais. Por que você não se concentra nisso, que é muito mais simples do que a questão da vida eterna?".”
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Contardo Calligaris
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