Lazer e ócio- As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz remorso.
Pensam com o relógio na mão, enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa-
vivem como alguém que a todo instante poderia “perder algo”.
“Melhor fazer qualquer coisa do que nada”.
– este é o princípio e também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior. (...)
Que lástima essa desconfiança crescente de toda alegria!
Cada vez mais o trabalho tem a seu lado a boa consciência:
a inclinação à alegria já chama a si mesma “necessidade de descanso” e começa a ter vergonha de si:
“Fazemos isso por nossa saúde”- é o que dizem as pessoas quando são flagradas numa excursão ao campo. (...)
Assim como todas as formas sucumbem visivelmente à pressa dos que trabalham, o próprio sentimento da forma, o ouvido e o olho para a melodia dos movimentos também sucumbem. (...)
Pois viver continuamente à caça de ganhos obriga a despender o espírito até à exaustão, sempre fingindo, fraudando, antecipando-se aos outros: a autêntica virtude, agora, é fazer algo em menos tempo que os demais.
Assim, são raras as horas em que a retidão é permitida; nessas, porém, a pessoa está cansada e gostaria não apenas de se “deixar ficar”, mas de se estender desajeitadamente ao comprido.
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A arte de andar com as pessoas reside essencialmente na habilidade (que pressupõe um longo treino) de admitir, ingerir uma refeição em cujo preparo não temos confiança.
Desde que cheguemos à mesa com uma fome de lobo, tudo corre facilmente, mas esta fome de lobo, não a temos quando precisamos!
Ah, como os semelhantes são difíceis de digerir!
(...) Terceiro princípio: auto-hipnotização.
Fixar os olhos no objeto de relacionamento como se ele fosse um botão de vidro, até que paramos de sentir prazer e desprazer e adormecemos imperceptivelmente, ficamos hirtos, adquirimos postura: um remédio caseiro que vem do matrimônio e da amizade, amplamente testado, tido como indispensável, mas ainda não formulado cientificamente. Seu nome popular é- paciência-.
Também nós andamos com “pessoas”, também nos vestimos modestamente a roupa com a qual (como a qual) nos conhecem, nos estimam, nos procuram, e assim comparecemos em sociedade, isto é, entre pessoas disfarçadas que não querem ser tidas como tais;
também nós fazemos como todas as máscaras prudentes, desembaraçando-nos polidamente de toda curiosidade que não diga respeito a nossa “roupa”.
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O que os outros sabem de nós- Aquilo que sabemos de nós mesmos e que temos na memória não é tão decisivo para a felicidade de nossa vida como se pensa.
Um dia cai sobre nós aquilo que outros sabem (ou acreditam saber) de nós e então reconhecemos que isso é mais forte.
É mais fácil lidar com sua má consciência que com sua má reputação.
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O que fazemos- O que fazemos não é jamais compreendido, mas somente elogiado e criticado.
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Na dor há tanta sabedoria como no prazer: como este, ela está entre as forças de primeira ordem na conservação da espécie.
Se não, há muito já teria desaparecido; o fato de doer não é argumento contra ela, é sua essência.
Eu escuto, na dor, o grito de comando do capitão do navio: “Recolham as velas!”.
O ousado navegador “homem” teve de aprender mil maneiras de dispor as velas, senão logo teria passado, o mar o teria engolido.
Precisamos também saber viver com a energia diminuída: tão logo a dor dá seu sinal de alarme, é tempo de diminuí-la- algum grande período, um temporal está se armando, e é bom nos “inflarmos” o menos possível. (...)
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Agora lhe parece um erro o que outrora você amou como sendo uma verdade ou probabilidade você o afasta de si e imagina que sua razão teve aí uma vitória.
Mas talvez esse erro, quando você era outro- você é sempre outro, aliás -,
lhe fosse tão necessário quanto as suas “verdades” de agora,
semelhante a uma pele que lhe escondia e cobria muitas coisas que você ainda não podia ver.
Foi sua nova vida que matou para você aquela opinião, não sua razão: você não precisa mais dela, e agora ela se despedaça e a irracionalidade surge dentro dela como um verme que vem à luz.
Quando exercemos a crítica, isso não é algo deliberado e impessoal- é, no mínimo com muita freqüência, uma prova de que em nós há energias vitais que estão crescendo e quebrando uma casca.
Nós negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar, algo que talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos!- Estou dizendo isso em favor da crítica.
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Autodomínio- Esses mestres da moral que acima e antes de tudo recomendam ao ser humano que tenha poder sobre si mesmo, acarretam-lhe assim uma doença peculiar:
uma constante irritabilidade para com todas as emoções e inclinações naturais e uma espécie de comichão.
Não importa o que venha a empurrar, puxar, atrair, impelir esse homem irritável, partindo de dentro ou de fora-, sempre lhe parece então que o seu autodomínio corre perigo: ele não pode mais confiar-se a nenhum instinto, a nenhum bater de asas, e fica permanentemente em atitude de defesa, armado contra si mesmo, de olhar agudo e desconfiado, perene guardião do castelo em que se transformou.
Sim, ele pode tornar-se grande desse modo!
Mas como ficou insuportável para os outros, difícil para si mesmo, empobrecido e afastado das mais belas causalidades da alma! E também de toda nova instrução!
Pois é preciso saber ocasionalmente perder-se, quando queremos aprender algo das coisas que nós próprios não somos.
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A vida não é argumento.- Ajustamos para nós um mundo em que podemos viver- supondo corpos, linhas e superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé, ninguém suportaria hoje viver! Mas isto não significa que eles estejam provados.
A vida não é argumento; entre as condições para a vida poderia estar o erro.
“Explicação”, dizemos; mas é “descrição” o que nos distingue de estágios anteriores do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor- e explicamos tão pouco quanto aqueles que nos precederam.
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O maior dos pesos- (...) “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente- e você com ela, partícula de poeira!”
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A: Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade imperiosa- falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta.
B: Mas por que você escreve então?
A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de meus pensamentos. (...)
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Gaia Ciência- Nieztsche.