Assim, a indústria cultural, os meios de comunicaçao de massa e a cultura de massa surgem como funções do fenômeno de industrialização. É esta, através das alterações que produz no modo de produção e na forma do trabalho humano, que determina um tipo particular de indústria (a cultural) e de cultura (a de massa), implantando numa e noutra os mesmos princípios em rigor na produção econômica em geral: o uso crescente da máquina e a submissão do ritmo humano ao ritmo da máquina; a exploração do trabalhador; a divisão do trabalho. Estes são alguns dos traços marcantes da sociedade capitalista liberal, onde é nítida a oposição de classes e em cujo interior começa a surgir uma cultura de maça. Dois desses traços merecem uma atenção especil: a reificação (ou a transformação em coisa: a coisificação) e a alienação.
Para essa sociedade, o padrão maior de avaliação tende a ser a coisa, o bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portanto tudo se transforma em coisa- inclusive o homem. E esse homem reificado só pode ser um homem alienado: alienado de seu trabalho, que é trocado por um valor em moeda inferior às forças por ele gastas; alienado do produto de seu trabalho, que ele mesmo não pode comprar, pois seu trabalho não é remunerado à altur do que ele mesmo produz; alienado, enfim, em relação a tudo, alienado de sues projetos, da vida do país, de sua própria vida, uma vez que não dispõe de tempo livre, nem de instrumentos teóricos capazes de permitir-lhe a crítica de si mesmo e da sociedade.
Nesse quadro também a cultura, feita em série, industrialmente para o grande número, passa a ser vista não como instrumento de livre expressão, crítica e conhecimento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer outra coisa. E produto feito de acordo com as normas gerais em vigor: produto padronizado, como um espécie de kit pta montar, um tipo de pré-concepção feito para atender necessidades e gostos médios de um público que não tem tempo de questionar o que consome.
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Assim, e partindo do pressuposto (aceito a título de argumentação) de que a cultura de massa aliena, forçando o indivíduo a perder ou não formar uma imagem de si mesmo diante da sociedade, uma das primeiras funções por ela exercida seria a narcotizante, obtida através da ênfase ao divertimento em seus produtos. Procurando a diversão, a indústria cultural estaria massacrando realidades intoleráveis e fornecendo ocasiões de fuga da realidade. Por outro lado, com seus produtos a indústria cultural pratica o reforço das normas sociais, repetidas até a exaustão e sem discussão. Em consquência, uma outra função: a de promover o conformismo social.
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É esa uma tese de direita ou de esquerda? É de direita, sem dúvida, na medida em que para a direita sempre interessou o controle do prazer em benefício da produtividade capaz de gerar lucros e mais lucros. Está aí toda uma ideologia de defesa do trabalho a confirmá-lo. Pretende-se sempre fazer crer que o trabalho dignifica, que o trabalho é o veículo da ascensão, que o trabalho é salvação- quando, no quadro social em que vivemos (de divisão das atividades e distribuição desigual de renda, para dizer o mínimo), é patente que ele não é nada disso. Nesse quadro pintado pela direita, o prazer- sob sua forma diminuída: a diversão- só é admitido esporadicamente (feriado, férias) e mesmo assim apenas como elemento reforçador do trabalho (na medida em que recompõe as forças do trabalhador, permitindo a continuidade da exploração destas) e nunca como seu oposto.
Mas é também uma tese de esquerda, sem dúvida nenhuma. Em seu delicioso clássico O Direito à Preguiça, Paul Laforgue já observava como os trabalhadores europeus do século XIX, equivocadamente liderados por seu partido de esquerda, viviam a reivindicar o direito ao trabalho (cujo único efeito seria o esmagamento contínuo deles mesmos) ao invés de exigir um outro sistema em que tivessem os mesmos lazeres dos patrões- em que todos pudesse, diríamos hoje, entregar-se aos prazeres. E mesmo neste século, uma esquerda um tanto limitada continua fazendo do trabalho a sua bandeira, quase igual à hasteada pela direita.
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O que fica invalidada é a visão de um mundo transformado numa aldeia global de cuja vida todos participariam ativamente graças à TV. É possível, de fato, que o mundo todo venha a adotar os mesmos valores, a mesma ideologia, graças às chamadas "multinacionais da cultura", que tendem a difundir por toda parte, particularmente pela TV, uma mesma estrutura de pensamento, um mesmo comportamento, gerados num ou em alguns poucos centros de decisão. No caso, e por enquanto, os EUA. Mas dizer, a partir daí que o mundo todo estaria participando desse processo vai uma enorme distância. De uma ideologia inculcada é possível dizer várias coisas, menos que ela se oferece à participação.
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Análise pelo processo de significação
Todo processo de significação- e este é o processo que está em jogo nos veículos da indústria cultural, como aliás em todas as demais atividades relativas ao ser humano- está baseado na operação de signo. Sendo signo tudo aquilo que representa ou está no lugar de outra coisa (a palavra "cão" representa um cão qualquer, assim como minha foto na carteira de identidade representa a minha pessoa, representa a mim, está em meu lugar), entende-se por "operação de signo" a relação que se estabelece entre um signo propriamente dito (uma palavra, uma foto, um desenho, uma roupa, uma edificação, etc), o referente (aquilo para o que o signo aponta, aquilo que é representado pelo signo) e o interpretante (ou conceito, imaem mental, significado formado na mente da pessoa receptora de um dado signo). Assim, o signo "cão" remete ao leitor uma entidade existente (o referente: o cão) e aciona em sua mente um processo produtor do interpretante (ou significado: a idéia do que é normalmente um cão, acrescida eventualmente das imagens particulares que esse leitor pode ter dos cães e que dependem, estas, de sua experiência pessoal: o conceito de animal mamífero, quadrúpede, doméstico pode estar associado à idéia de agressividade ou ternura, etc.).
Os signos, no entanto, não são todos da mesma espécie. E cada tipo de signo tende a provocar um certo tipo de relacionamento entre ele mesmo e a pessoa que o recebe, nesta provocando também um tipo particular de interpretante ou significado. Uma coisa é tentar transmitir a alguém o significado do que seja um cão através da palavra escrita e outra é tentar a mesma coisa através da fotografia desse cão. A palavra escrita é, de certo modo, "neutra"; ela deixa em aberto um amplo leque de possibilidades, de modo que, além do mínimo de significado específico nela contido (a idéia, por exemplo, de um animal doméstico, amigo ho homem), ela admite uma série de idéias pessoais da pessoa que a recebe. Pode formar-se, nessa pessoa, a imagem de um animal pequeno ou grande, feroz ou cordado, de pêlo curto ou comprido, preto ou branco. Já a fotografia do cão (que passa a ser um certo cão) não é mais tão neutra assim: ela já determina que o cão é grande ou pequeno, agressivo ou calmo, branco ou amarelo.
Surge, assim, a necessidade de distinguir entre os tipos de signos. Charles S. Peirce propõe que os signos possam ser de três tipos: ícone, índice e símbolo:
a) Ícone: é um signo que tem uma analogia com o objeto representado: uma foto, uma escultura.
b) Índice: signo que representa seu objeto por remeter-se diretamente à ele, está ligado à ele de tal modo que, sem ele, não pode existir: poças de água podem ser o índice de chuva recente, assim como nuvens escuras indicam chuva iminente; o cata-vento é um signo que indica a existência de vento assim como uma seta num corredor indica o caminho. Se não houver um caminho a seguir, a seta não tem sentido. O índice não existe se seu receptor não conhecer previamente o objeto representado, se eu já não tiver visto a relação entre nuvem escura e chuva, não poderei interpretar o signo "nuvem escura". Isto leva a ver o ícone como um signo capaz de propor o novo, como um signo que revela, enquanto o índice é um signo repetidor, um signo de manutenção.
c) Símbolo: Signo que representa seu objeto em virtude de uma convenção, de um acordo. Diversamente do ícone, não tem nenhum traço em comum com seu objeto, nem está ligado a ele de algum modo, ele é arbitrário. O exemplo mais comum do símbolo é a palavra, qualquer palavra.
Para ser entendido, o símbolo não exige que seu receptor conheça o objeto a que se refere, como o índice: o símbolo é mesmo, um modo de conhecer coisas novas. Mas também ao contrário do ícone, o conhecimento do símbolo não implica o conhecimento da coisa representada tal como ela é.
Se a consciência icônica pode me levar a descobertas absolutamente novas, a indicial só pode me revelar aquilo que já foi revelado pelo menos a outros, diminuindo o valor da revelação: a seta me mostra o caminho, mas esse caminho já foi conhecido, estabelecido por outros antes de mim.
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Chegamos agora o momento do relacionamento entre essas preposições da semiótica e os produtos da indústria cultural. Aqui, então, vai ser possível dizer que o problema com a indústria cultural não é tanto o que ela diz ou não; não é tanto o fato de ser ela deste ou daquele modo, estruturalmente; nem o fato de ter surgido neste ou naquele sistema político-social- mas, sim, no modo como diz. É que a indústria cultural- na TV, no rádio, na imprensa, na música (particularmente a dita popular), nos fascículos, mas também nas escolas e nas universidades- é o paraíso do signo indicial, da consciência indicial.
Como assim? Talvez a anedota de Joseph Ransdell possa traçar o quadro gerl da situação: "Por favor, chefe, onde e quando esse trem vai parar?"
"Esse trem não pára nunca. Você está no Expresso Indicial. Mas não é um barato viajar e ver todas essas coisas?
Dê uma olhada, rápido, ainda há tempo pra ver a Torre Inclinada de Pisa, ali entre aqueles dois prédios.
Não é- puxa, já passou- não é excitante?"
É isso. Toda a indústria cultural vem operando com signos indiciais e, assim, provocando a formação e o desenvolvimento de consciências indiciais. A tônica consiste apenas em mostrar, indicar, constatar. Não há revelação, apenas constatação, e ainda assim uma constatação superficial- o que funciona como mola para a alienação. O que interessa não é sentir, intuir ou argumentar, propriedades da consciência icônica e simbólica: apenas operar.
Como se dá esse procedimento indicial num dos veículos da indústria cultura, como a TV? Basicamente, através da multiplicação não de informações mas de trechos de informações, apresentadas como que soltas no espaço, sem reais antecedentes (a não ser a eventual repetição anterior de informações análogas à em tela, mas que não são sua causa) e sem conseqüentes.
E essas "informações" não revelam aquilo que lhes está por trás, mas servem exatamente para ocultar o que representam; servem para interpor-se entre o receptor e o fato, não para abreviar o caminho entre ambos.
Somente a criança de pouca idade, ainda não submetida maciçamente à ação da indústria cultural e da sociedade em geral (e mesmo da sociedade anterior à indústria cultural), consegue furtar-se a esse esquema. Ela é capaz de pensar iconicamente, sentindo ou intuindo o significado das coisas sem se preocupar com fornecer-lhe razões lógicas. E ela é também capaz de pensar simbolicamente, ou, pelo menos, de tentá-lo seriamente: é o caso da criança que perguntando "o que é roda?", e recebendo como resposta "uma coisa circular que os carros usam para andar", retruca perguntando "o que é carro?"- e ouvindo que é "uma máquina que anda a gasolina" pergunta "e gasolina, o que é" e assim por diante, de conceito em conceito, até esgotar a paciência do interlocutor.
Logo, porém, essa criança entrará no pelotão dos adultos que, em virtude da "educação" recebida, do conformismo, da lei do menos esforço, do sentimento injustificado de vergonha e de uma série de outros motivos, deixam de perguntar-se e perguntar aos outros sobre os antecedentes e conseqüentes de um conceito- ficando assim prontos para entrar no esquema indicial que serve, mas não só ela, a indústria cultural. Passam a contentar-se com "dados" que saem do nada e levam a parte alguma, e acomodam-se a esse universo vazio de significação em que se trasnformam suas vidas.
Aparentemente, nada mais fáci é útil que entender esses indíces que sao como pegadas humanas sobre a areia. À primeira vista, estas levariam de modo claro e direto à pessoas por elas responsável. Ocorre no entanto, em nossa sociedade, que a única coisa ao final vista são essas pegadas. Fica-se sem saber quem as fez, onde está quem as fez, por que foram feitas, e nem se o sentido da marcha dessa pessoa foi realmente daqui pra lá ou se as pegadas foram feitas com a pessoa caminhando de costas.
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Nesse momento, seria possível perguntar se a indústria cultural é uma resultante dessa tendência geral da sociedade, reproduzindo-a nos limites do seu campo, ou se é a indústria cultural que produz essa sociedade. É forte a tendência no sentido de dizer que a indústria cultural é manipulada com esse objetivo, e embora possa parecer verdadeiro que a partir de um certo momento isso se verifique, será mais adequado dizer que a própria sociedade vai lentamente gerando seus instrumentos e suas tendências- entre eles, o esquema tecnológico de visão do mundo e sua correspondente, a consciência indicial- sem que haja um gênio do mal, uma vontade maior, maquiavélica, que decide sujeitar toda a humanidade através de um instrumento: a indústria cultural. Acreditar no contrário, nessa entidade malévola, é bem mais fácil e cômodo do que aceitar a idéia de que cada um de nós é responsável pela existência e desenvolvimento dessa consciência indicial.
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O que é Indústria Cultural- Teixeira Coelho.