Uma coisa mais, antes que você comece.
O que me vai dizer deve diferir, sob determinado aspecto, de uma conversa comum.
em geral, você procura, corretamente, manter um fio de ligação ao longo de suas observações e exclui quaisquer idéias intrusivas que lhe possam ocorrer, bem como quaisquer temas laterais, de maneira a não divagar longe demais do assunto.
Neste caso, porém, deve proceder de movo diferente.
Observará que, à medida que conta coisas, ocorrer-lhe-ão diversos pensamentos que gostaria de pôr de lado, por causa de certas críticas e objeções.
Ficará tentado a dizer a si mesmo que isto ou aquilo é irrelevante aqui, ou inteiramente sem importância, ou absurdo, de maneira que não há necessidade de dizê-lo.
Você nunca deve ceder a estas críticas, mas dizê-lo apesar delas- na verdade, deve dizê-lo exatamente porque sente aversão a fazê-lo.
Posteriormente, você descobrirá e aprenderá a compreender a razão para esta exortação, que é realmente a única que tem de seguir.
Assim, diga tudo o que lhe passa pela mente. Aja como se, por exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um vagão ferroviário, a descrever para alguém que se encontra dentro as vistas cambiantes que vê lá fora.
Finalmente, jamais esqueça que prometeu ser absolutamente honesto e nunca deixar nada de fora porque, por uma razão ou outra, é desagradável dizê-lo.
Freud- Sobre o Início do tratamento. p. 78
segunda-feira, maio 02, 2011
segunda-feira, março 21, 2011
quinta-feira, março 17, 2011
O Tempo e o Cão
O indivíduo e uma flor de estufa gerada e criada por uma instituição bastante recente, a família nuclear moderna.
Centrado na razão à custa da eterna vigilância da consciência moral, obrigado a tornar-se senhor de seus impulsos e da imagem oferecida ao Outro, vivendo em permanente estado de alerta diante da feroz concorrência da economia capitalista emergente, o indivíduo estava fadado a sofrer as consequências sintomáticas do recalque que sustentava suas pretensões.
O Outro, na teoria lacaniana, diz respeito à dimensão simbólica que está na origem da divisão do sujeito. A face simbólica do Outro pode ser resumida como a existência necessária da linguagem que determina e precede a existência dos sujeitos. Mas o campo simbólico é sustentado subjetivamente por representações imaginárias, o imaginário provê consistência ao simbólico e à Lei que ele determina. A face imaginária do Outro repousa sobre as formas- estas sim, contingentes- através das quais, em cada cultura, a Lei simbólica se apresenta aos homens. A mãe e o pai, que introduzem o infans na linguagem, constituem as primeiras formações imaginárias do Outro, substituídas após o atravessamento do Édipo por figuras que exercem, no espaço público, alguma forma de autoridade. O professor, o líder político, o monarca, Deus, o parceiro amoroso, são os exemplos mais frequentes das diversas representações daquele a quem o sujeito neurótico dirige a pergunta: O que deseja de mim?
As sociedades modernas, caracterizadas pela mobilidade social e pela crescente liberdade nas escolhas individuais, tornaram as condições da inclusão e as regras de convívio cada vez mais abstratas. A complexidade das estruturas simbólicas, a partir do primórdios do capitalismo, tornou o campo do Outro inacessível ao saber (consciente) dos sujeitos sociais.
Em sociedades em que havia forte coesão entre as representações coletivas da função paterna, as pessoas estariam dispensadas de construir uma resposta neurótica ao conflito entre a satisfação pulsional e a Lei.
Lévi-Strauss- “Essa forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem”. Na modernidade o mito não desaparece, mas seu estatuto se transforma, de uma tradição coletiva para um “tesouro individual”.
Uma das características de nossa evolução consiste na transformação paulatina da coerção externa em coerção interna, pela ação de uma instância psíquica especial do homem, o supereu, que vai acolhendo a coerção externa entre seus mandamentos.
O neurótico em psicanálise é aquele que se esforça para submeter-se às exigências do supereu, como se com isso lhe fosse possível reverter a perda subjetiva que se consuma pela passagem pelo Édipo e recuperar a unidade (impossível) com o Outro.
Na modernidade que o Outro se torna inconsciente.
A mania seria um triunfo passageiro sobre a melancolia; a luta inconsciente entre eu e supereu, com vitórias parciais de um lado e de outro do campo de batalha, faz dos estados maníacos e melancólicos duas faces indissociáveis da mesma estrutura psíquica.
Depressão é o nome contemporâneo para os sofrimentos decorrentes da perda do lugar dos sujeitos junto a versão imaginária do Outro.
Não é possível precisar se todos esses crescimentos estatísticos revelam um aumento epidêmico das depressões (assim como dos transtornos bipolares e da hiperatividade infantil), um aperfeiçoamento de métodos diagnósticos, uma consequência da expansão da indústria farmacêutica ou, na pior das hipóteses, uma atuação conjunta de todos esses fatores.
As novas estratégias de venda dos laboratórios farmacêuticos já não se limitam à divulgação dos remédios lançados no mercado. A ênfase dos panfletos distribuídos nos consultórios de médicos e psiquiatras recai sobe os novos critérios de diagnóstico das depressões, de modo a incluir um número crescente de manifestações de tristeza, luto, irritabilidade e outras expressões de conflito subjetivo entre “transtornos” indicativos de depressão a serem tratados por emprego de medicamentos.
Assistimos, assim, a uma patologização generalizada da vida subjetiva, cujo efeito paradoxal é a produção de um horizonte cada vez mais depressivo.
O projeto pseudocientífico de subtrair o sujeito- sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta- a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações que acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade, de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico- o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante a finitude, do desamparo e da solidão humana.
A maior parte dos lucros da indústria farmacêutica depende de alguns poucos remédios para os quais sempre se buscam novos usos. Se tais novos usos não surgem por meio de experimentos, recorre-se à publicidade de certos males- ou seja- a convencer as massas de que alguns de seus estados de ânimo são, na verdade, doenças que requerem tratamento.
Nos congressos internacionais de psiquiatria, mais do que a propaganda de produtos lançados no mercado, o que e divulgam são novos métodos diagnósticos capazes de detectar os menores sinais de distúrbios depressivos.
À aparente eficiência dos tratamentos medicamentosos soma-se a paixão pela segurança que caracteriza a sociedade contemporânea para a qual a ideia de que a vida seja um percurso pontuado por riscos inevitáveis parece um escândalo.
A aliança entre os ideais de precisão científica e de eficiência econômica produz uma visão fantasiosa da vida humana como um investimento no mercado de futuros, cujo sentido depende de se conseguir garantir, de antemão, os ganhos que tal investimento deverá render. É evidente que, e acordo com a lógica subjacente a esse projeto, o campo incerto da subjetividade, tributário do movimento errante do desejo inconsciente, deve ser reduzido à sua dimensão mais insignificante a fim de que nenhum rodeio inútil se interponha entre cada projeto de vida e sua meta final. Tal desvalorização dos meios (e dos rodeios, dos descaminhos, da errância e de todas as formas de digressão que permitem certo usufruto desinteressado do tempo) em prol de uma finalidade urgente e inquestionável favorece o sentimento genuinamente depressivo de desvalorização da vida.
O mais recente “avanço” da psiquiatia consiste em substituir, pontualmente, comportamentos indesejados por outros mais adequados. Dessa forma, não há razão para não se oferecer medicamentos também às pessoas consideradas “normais”, de forma a eliminar um ou outro comportamento indesejado, um ou outro estado de humor desagradável, e assim possibilitar a conquista de um estado de ânimo estável e sem conflitos, uma saúde mental “melhor que bem”.
Encontramos com frequência, entre os depressivos, transtornos na percepção temporal revelador por aqueles que sentem que o tempo cotidiano, sem a sustentação de uma fantasia a respeito do futuro, tornou-se um tempo estagnado, um tempo que não passa.
O desejo, em psicanálise, é por definição inconsciente- e seu objeto, perdido. A posição do sujeito ante o objeto (perdido) de seu desejo determina seu lugar no fantasma, de onde ele ensaia sua versão inconsciente a respeito do que o Outro quer dele. Dessa posição, sobre a qual se sustenta a estrutura, o neurótico, forçosamente, deverá cair- se não na vida, certamente ao longo de uma análise.
É quando as tradições perdem a força de determinar os destinos das novas gerações, quando a verdade deixa de ser entendida como revelação divina e se multiplica em saberes especializados, quando o Outro deixa de estar representado imaginariamente, por uma única e incontestável figura de autoridade, que o indivíduo é obrigado a se afirmar como centro de suas referências e a se responsabilizar por estabelecer alguma concordância entre a verdade do ser e o Bem, entendido como convicção coletiva estabilizadora do laço social.
O que varia da passagem das sociedades tradicionais para a modernidade é, por um lado, o estatuto imaginário do Outro, que se fragmenta em inúmeras representações; por outro lado, o aumento da responsabilidade do eu- que se individualiza- por suas escolhas, o que favorece a culpa neurótica.
A vergonha é um afeto causado quando um homem é ferido em sua imagem pública, enquanto o tormento da culpa é uma questão de foro íntimo, provocada pela (auto) condenação da consciência moral. Em um sociedade guerreira, em que o valor do homem se estabelece em ato diante de todos os seus companheiros, o sentido público da vergonha é mais determinante do que a culpa.
Do século XV em diante, foi o campo do Outro que se desarticulou e perdeu a unidade mantida durante séculos sob a hegemonia da Igreja católica.
A racionalidade aparentemente infinita do capitalismo consiste em fazer com que as resistências, conscientes ou inconscientes, trabalhem a seu favor, incluindo até mesmo as representações recalcadas do mal-estar entre os valores agregados às mercadorias.
A desconflitualização do psíquico é concomitante, se não tributária, da desconflitualização do campo social.
A constituição do psiquismo é tributaria do Outro, tanto no sentido simbólico do campo (aberto) da linguagem quanto em sua face imaginária, ancorada em personagens- aos quais o sujeito atribui, na vida social ou na esfera das relações amorosas, alguma forma de poder- que substituem os primeiros seres de amor da vida infantil, como porta-vozes dos significantes mestres que organizam o laço social.
Do ponto de vista da constituição dos sujeitos, sabemos que a separação entre a criança e o Outro materno produz a perda de um objeto (dito objeto a, inaugurador de toda a série de objetos aos quais o desejo há de dirigir seu impulso) que, por sua própria natureza, é impossível de ser reencontrado. Esse objeto perdido passa a funcionar então como causa do desejo. Não confundir com o suposto “objeto do desejo”, promessa e/ou fantasia com a qual estamos sempre a nos iludir; o desejo não tem objeto que o satisfaça, é puro impulso em busca do reencontro impossível com um objeto perdido. A rigor, todos os objetos podem satisfazê-lo de maneira fugaz, e nenhum há de satisfazê-lo antes da morte, único objeto total ao alcance do humano.
Para não ter de suportar tal destino de desejar o que já não há e arcar com a falta, o sujeito inventa o que Lacan chamou de fantasma: um modo de negociar o objeto a, em sua função de causa do desejo, em troca da demanda do Outro. O neurótico se defende da castração “ao transportar para o Outro a função do a”. Negocia o desejo pela demanda, e tenta trocar a (in)satisfação pela esperança de gozo. Já não é ele quem deseja, é o Outro que o demanda. Atender a essa demanda é um modo de fazer-se objeto para o gozo do Outro; operação tentadora, mas impossível.
A instância do supereu, herdeira das interdições e das moções de gozo que caracterizam o complexo de Édipo, também pode ser considerada uma representante da realidade social no psiquismo, a operar através da imposição de ideais de eu e da regulação da oferta de modalidades de gozo. O supereu exige que o sujeito goze, ao mesmo tempo que o proíbe de gozar. A solução de compromissos entre esses dois mandatos impossível se dá via da adesão do eu aos ideais que, em última instância, são formações imaginárias organizadoras do campo social, variáveis de cultura para cultura. Os ideais de eu nunca são puramente individuais, eles se formam pela via das identificações que incluem necessariamente o Outro, os Outros.
Nas sociedades industriais, ou superindustriais, do século XXI, a face imaginária do Outro vem sendo positivada constantemente por obra da indústria do espetáculo, cuja oferta de imagens recobre quase toda a face do planeta. A essa grande dispersão das representações imaginárias do Outro, ao corresponder, necessariamente, igual multiplicidade de mandatos e de enunciados. Uma das características mais paradoxais da chamada sociedade do espetáculo é justamente essa combinação entre uma grande variedade de imagens que se oferecem à identificação e à repetição praticamente idêntica dos enunciados que elas veiculam.
É possível que, no atual estágio do capitalismo, a condição de desamparo do sujeito moderno ante o descentramento e a multiplicação das formações imaginárias que, dessa forma, impossibilitam uma representação estável e socialmente compartilhada do Outro esteja em vias de superação.
O avanço das técnicas de sondagem das “motivações inconscientes” do chamado público consumidor joga um papel decisivo nesse quadro, o que torna possível afirmar que uma série de enunciados que dizem respeito às representações recalcadas deixaram de ser inconscientes. Eles participam da constituição da realidade social através de seus principais arautos: as mensagens publicitárias emitidas não apenas pelos outdoors, o rádio e a televisão, mas também pela internet, pelos aparelhos de celular, ou embutidas na forma de merchandising na teledramaturgia e no cinema, assim como em algumas notícias de jornais.
Vale ressaltar que, em Guy Debord, a ideia de “sociedade do espetáculo” não se reduz à mera constatação de que somos permanentemente assediados por uma abundante oferta de imagens. O conceito de espetáculo não se resume a um conjunto de imagens, mas é uma relação social entre indivíduos mediada por imagens.
As imagens, por sua própria condição, se oferecem como resposta ao enigma do inconsciente pela via de produção de sentido, que é a mesma via da produção de identificações. Dessa forma, o movimento errático do desejo cede lugar ao gozo promovido pelo encontro com a imagem que encobre a falta de objeto.
De certa forma, é como se a réplica do fantasma, que situa o sujeito do inconsciente diante da demanda de gozo do Outro, se apresentasse aos sujeitos e a partir de um outro lugar, socialmente compartilhado e alheio ao inconsciente.
A face imaginária do Outro, na vida contemporânea vem coincidir com os mais primitivos mandatos do supereu, prometendo atender aos anseios recalcados ao longo da travessia edípica: anseio de abrir mão da vida do desejo em troca de uma oferta (imaginária) de gozo.
A aparência de multiplicidade de imagens ofertadas, com a consequente pulverização das demandas do Outro, na vida contemporânea, é enganosa. Sob as mais variadas imagens e os mais diversos enunciados, a versão imaginária do desejo do Outro, hoje, tem tanta consistência como na Idade Média quando a hegemonia da Igreja católica ainda não fora abalada pelas teses de Lutero. O que o Ouro exige do sujeito contemporâneo é sempre que ele goze. Muito. Que essa seja uma das faces contraditórias do imperativo superegoico – “goze!/não goze!”- só faz tornar essa exigência, promovida a condição organizadora do laço social, ainda mais angustiante e opressiva para os sujeitos.
Ao contrário do que pode parecer, uma cultura regida por imperativos de gozo não produz necessariamente sujeitos mais independentes da crueldade superegoica.
A culpa neurótica em relação ao supereu tora-se ainda mais impagável sob tais condições, em que os ideais parecem não exigir das pessoas mais do que disposição de usufruir dos prazeres do presente, de cultivar o corpo e entregar-se às fantasias associadas aos apelos do consumo. O sujeito culpado não leva em conta, porque não sabe disso, a impossibilidade de responder ao gozo ao qual é convidado ou, do ponto de vista do supereu, lhe é exigido. O sentimento de insuficiência, o medo de perder o amor dessa instância que representa, no psiquismo, a esperança de recuperar a fatia e narcisismo e a porção de gozo perdidas torna os neuróticos candidatos à depressão.
Não cabe ao psicanalista proibir as pessoas de gozar. Mas ele pode ser o porta voz da autorização para não gozar. É importante que se possa dizer, publicamente: “Vocês podem não gozar”.
É preciso levar em consideração ainda, o modo como o imperativo do gozo se articula aos ideais de eficácia econômica. Tal articulação subverteu os ideais de renuncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud. Na sociedade contemporânea, o gozo fálico não se obtém mais apenas nos breves intervalos de tempo roubados ao trabalho alienado. Na passagem do capitalismo produtivo ao capitalismo consumista, a porção subjetiva cedida pelos cidadãos, trabalhadores ou não, à acumulação do capital não diminuiu, embora em muitas profissões as jornadas de trabalho tenham até sido encurtadas. O capitalismo contemporâneo apropria-se e alimenta-se de algo mais íntimo do que a força do trabalho, o capitalismo alimenta-se do mais-de-gozar.
É fácil perceber os efeitos de vazio subjetivo produzidos por tal apropriação, a despeito de todas as engenhocas que o mercado oferece para compensar os sujeitos dessa expropriação do que lhe é mais genuíno: a invenção singular dos destinos da pulsão.
O que esse trabalho produz? Nada mais nada menos que os sujeitos de que o atual estágio do capitalismo necessita: sujeitos esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo, portanto disponíveis para responder aos objetos e imagens que os convocam; sujeitos ligados ao puro “aqui e agora” de um presente veloz, incapazes de imaginar um devir que não seja apenas a reprodução da temporalidade encurtada característica do capitalismo contemporâneo.
Isso gira no vazio, na mesma velocidade com que se produzem as concentrações do capital virtual na bolsa de valores: um dinheiro a que não corresponde nenhuma produção de riquezas. Custa-nos entender o óbvio, lembrado por Marx em o capital: a produção de riquezas, em uma sociedade, não é idêntica ao acúmulo de dinheiro. O dinheiro, como mercadoria circulante universal, só equivale à riqueza nos casos em que possibilita a intensificação das trocas, não só materiais, mas também simbólicas. Riqueza, em Marx, significa intensificação e circulação de capacidades, de necessidades, de invenções, de potencial humano. Uma economia que apenas concentre capital não produz uma sociedade rica, do mesmo modo que as razões do mercado estão longe de produzir uma sociedade justa ou razoável.
Acima das trocas humanas de riqueza, uma nova forma abstrata de poder, chamada mercado financeiro, regula a vida social, sustentada pela crença globalmente compartilhada que faz equivaler acumulação de dinheiro à riqueza. Em consequência, os desígnios do capital financeiro, sempre fora do alcance do homem comum, não podem ser contrariados.
Ao apropriar-se dos signos de gozo circulantes no imaginário social, os valores da eficiência econômica estendem-se a todos os âmbitos da vida, numa escala sem precedentes na história.
Uma sociedade governada pelo vale-tudo das razões de mercado torna-se ingovernável, além de produzir uma descrença generalizada na potência dos homens como agentes de transformação política, descrença esta que remete ao abatimento fatalista dos depressivos.
Marx já previa a dimensão de fantasia necessária para sustentar o feitiche da mercadoria, mas não poderia prever a dimensão superindustrial da produção dessa mercadoria inefável, cujo valor é todo sustentado pela fantasia: a mercadoria imagem.
A fantasia, antes uma mera pressuposição, tornou-se dominante na relação do sujeito com a mercadoria.
Ora, fazer sumir a falta significa fazer sumir o sujeito do desejo, daí decorre que a angústia participa inevitavelmente desse circuito, empurrando os sujeitos ainda mais, ora em direção às compensações do gozo imaginário, ora em direção aos efeitos anestesiantes das drogas e psicofármacos.
As mercadorias deslizam pelo oceano imaginário como objetos a mais, sempre portadoras de apelos mais intensos, por entre sujeitos que deslizam como mercadorias.
O sujeito da cultura do espetáculo observa o mundo como se fosse um eterno álbum familiar preenchido não pelas imagens de seus parentes, mas pelos acontecimentos do mundo das celebridades.
Assim, se produzem os sujeitos expropriados da experiência do inconsciente e do desejo, ávidos pelo consumo de imagens que lhe indiquem quem eles são.
Pois o que distingue a sociedade do consumo não é o fato que eles comprem incessantemente os bens em oferta, acessíveis a poucos, mas que todos estejam de acordo com a ideia de que tanto o sentido da vida social como o valor dos sujeitos sejam dados pelo consumo. Embora poucos possuam recursos para consumir os bens em oferta, as imagens que ocupam a esfera pública são acessíveis a todos.
O que se considera ação humana aqui são ações capazes de produzir alterações no campo do simbólico. Escolher a marca de cerveja, exibir o tênis de grife ou o carro do ano, malhar o corpo na academia e outras tantas modalidades dessa agitação que preenche todo o tempo não ocupado pelo trabalho ficam excluídas dessa categoria.
É difícil, até mesmo para os críticos e para os descontentes, imaginar as condições de superação de uma ordem social sustentada bem menos por estratégias de interdição do que por técnicas de sedução.
O aspecto do sintoma, que é o de ser uma tentativa (ainda que mal-sucedida) de cura.
O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado.
Os depressivos, cujo número parece aumentar na proporção direta dos imperativos de felicidade, são incômodos na medida em que questionam esse projeto.
A dolorosa consciência de sua inadaptação é confirmada pelo empenho da indústria farmacêutica em devolver os depressivos ao convívio regular com o coro dos contentes.
A diferença é que, se nos primeiros séculos do capitalismo industrial era importante curar o neurótico de suas inibições para fazê-lo produzir, hoje as neurociências se empenham em animar os depressivos para torna-los aptos a consumir. Ou, pelo menos, a desejar consumir, a estar de acordo com as demandas de consumo- essa forma avançada de poder disciplinar que normaliza a vida social.
Winnicott em O brincar e a realidade, relaciona a falta de criatividade ao fatalismo:
É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, em que o mundo em todos os seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e que não vale a pena viver a vida.
O depressivo, em sua estranha recusa a acreditar nos semblante da felicidade, está muito mais próximo de sua vida desejante do que ele imagina.
O tempo é o tecido da nossa vida. (Antônio Cândido)
O psiquismo se instaura a partir do trabalho de representação do objeto de satisfação esperado, na tentativa de anular o angustiante intervalo de tempo vazio.
O tempo é instituído, para cada sujeito, no intervalo entre a tensão de necessidade e a satisfação; mas como, para o filhote humano, a satisfação de necessidades depende inteiramente de que um Outro queira se ocupar dele, tal intervalo logo se apresenta a ele como o tempo que separa a demanda do Outro a possibilidade de o sujeito responder a ela. Dito de outra maneira: o sujeito do desejo, em psicanálise, é um intervalo sempre em aberto, eu pulsa entre o tempo próprio da pulsão e o tempo urgente da demanda do Outro.
“Apressa-te lentamente”: essa máxima latina foi adotada na juventude por Italo Cavino por representar “ a intensidade e a constância do trabalho intelectual.
A apologia da rapidez não exclui “os prazeres do retardamento”, que na literatura são finamente representados pelas digressões.
Freud em “A interpretação dos sonhos”, nos faz entender que o tempo ocioso que antecede as descobertas criativas, os “achados” aparentemente espontâneos que nos ocorrem independentemente dos processos conscientes de cálculos e raciocínios é o tempo do pensamento inconsciente. O instante do Eureka! Na criação artística, na pesquisa intelectual, no setting analítico etc; depende de um tempo interior, singular para cada sujeito e impossível de se determinar.
“Aproveitar bem o tempo” é um dos imperativos da vida contemporânea que corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriam para o desfrute da vida privada nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e pelas proibições da vida religiosa nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado, a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, essa forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que ornam a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção.
Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso aproveitar o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso.
É poderosa a pregnância imaginária dos acontecimentos que se desenrolam com no tempo. A esse registro chamamos memória, lembrança, rememoração. A memória obedece às leis que regem o imaginário. É ela quem no dá alguma medida, tanto individual quanto coletiva, do fio do tempo, e estabelece uma consistente impressão de continuidade entre os infinitos instantes que compões uma vida. Arrisco propor que o passado, cuja inscrição psíquica se dá através da memória, conserva o tempo em sua versão imaginária. É a memória que confere uma permanência imaginária a essa forma negativa do tempo, que é o passado. A função da memória, participante do mesmo registro psíquico do corpo e do narcisismo, é essencial para manter nosso sentimento imaginário de identidade ao longo da vida; ela funciona como garantia de que algo possa se conservar diante da passagem inexorável do tempo que conduz tudo o que existe em direção ao fim e à morte. Já o tempo como categoria abstrata do pensamento pertence ao registro do simbólico. O trabalho humano de simbolização e organização do Real não cessa de contar e demarcar o tempo em séculos, lustros, décadas, anos, meses, semanadas, dias, horas, minutos, segundos, frações de segundo... Marcações puramente simbólicas, destituídas de significação. Por fim, a pura passagem do tempo em direção à morte de todas as coisas, esse transcorrer inexorável, anterior ou independente de sua regulação social- esta que Freud afirma não ser passível de representação psíquica, a não ser pelo recurso à espacialização-, pertence ao registro do Real.
Se todo recalcado é inconsciente, nem todo inconsciente é recalcado. O estado inconsciente em que permanece a maior parte de nosso acervo mnêmico deve-se justamente ao fato de que a consciência só é capaz de trabalhar com escassas magnitudes de estímulos.
Embora essencial, a função da atenção consciente representa apenas uma fração muito pobre do trabalho psíquico, assim como é psicologicamente pobre o presente, tempo da ação orientada pala atenção e vigiada pela consciência.
A marcação abstrata do tempo é vigiada pelo trabalho da consciência em sua função de adaptar o eu às exigências da realidade- que não é outra coisa senão uma construção social. A sensação corriqueira do tempo como curso contínuo, linear e abstrato é produto da consciência, cujo trabalho dobrado de prestar atenção a si mesma e ao que advém de outros sistemas obriga-a a elaborar apenas quantidades escassas do muno exterior.
O que o sistema P-Cc bloqueia para responder ao excesso de estímulos presentes não é a função pontual de reconhecimento desses estímulos- que é uma as funções da memória-, mas a da rememoração, atividade psíquica prazerosa na qual o sujeito se entrega ao fluxo das associações entre estímulos presentes e vivências passadas. A sensação reconfortante de continuidade entre passado e presente que permite ao sujeito reconhecer-se no que Freud chamou de “obra psíquica de sucessivas épocas da vida” é produzida pela associação entre várias séries de marcas mnêmicas.
Já o tempo marcado pela autovigilância da consciência parece angustiosamente vazio, independentemente das atividades que o preenche, em decorrência dessa mesma autopercepção que a consciência exerce durante seu curso.
Freud compara a permeabilidade da consciência ao “bloco mágico”, objeto usado, na época, como bloco de rascunho em que se podia escrever e apagar indefinidamente as anotações.
O “eu oficial” seria o ego freudiano, cuja estabilidade ao longo do tempo depende justamente do trabalho da memória.
Abordarem a diferença estabelecida por Walter Benjamin entre experiência e vivência, de modo a analisar o sentimento bastante generalizado de empobrecimento da vida, nas condições superestimulantes e velozes da modernidade.
Com as solicitações simultâneas do celular, do controle remoto, do mouse e das câmeras digitais- já se entendeu que essas maquinetas nos solicitam, exigem que nos mantenhamos sempre ligados nelas, e não o contrário.
Ao deprimir-se, ele tenta fugir do excesso de ofertas (entendidas como demandas para o sujeito) do Outro para se refugiar debaixo das cobertas.
O que parece, em nossa obsessão pelo futuro, um excesso de desejo (e de vida) não passa do pathos contemporâneo: é a impaciência, essa aflição que nos precipita em direção ao vazio por não tolerarmos a impossibilidade de parar o tempo.
O medo da morte levou o homem do século XXI, com ajuda das biociências, a prolongar consideravelmente o seu tempo de vida biológica, sem com isso tornar-se mais capaz de desfrutar da duração. Hoje é possível viver com saúde durante oito ou nove décadas sem perder a sensação que de o tempo continua curto, de que a vida é a soma de instantes velozes que passam sem deixar marcas significativas.
Onde está o sujeito do desejo, no presente contraído que domina a temporalidade contemporânea? Se, por um lado o neurótico é aquele que adia ao máximo o momento do encontro com o desejo, também podemos sugerir que a pressa interessa a ele, uma vez que ela suprime o intervalo por onde o je tende a se manifestar.
O ideal de um neurótico obsessivo, por exemplo, para que seu sintoma esteja em sintonia com os ideais do eu, seria reduzir a vida a um tempo de puro fazer. Nesse sentido, não há muita diferença entre a pressa e seu aparente antípoda, a inibição: ambas conseguem evitar que algo de significativo, como a ação impulsionada pelo desejo, aconteça.
Em todo caso, nem a pressa nem a inação podem poupar indefinidamente o neurótico de se defrontar, mais cedo ou mais tarde, com o vazio produzido por essa temporalidade reduzida, na medida do possível, à dimensão do puro presente. De maneira não idêntica à do trabalho mecânico ou burocrático, mas similar, pode-se deduzir que o império do corpo- tanto do corpo que trabalha quanto daquele que “malha” para produzir apenas sua própria forma perfeita, atividades que no estágio atual do capitalismo pouco se diferenciam- desfavorecem tanto o compromisso com o desejo como o sentimento de continuidade da existência.
Sua lentidão encobre a impaciência característica dos que tiveram sua demanda antecipada pelo Outro e se vedem incapacitados para preencher esse inquietante rodeio entre o nascimento e a morte, ao qual chamamos de vida.
Pois o que é o desejo senão o movimento que rodeia o vazio deixado por seu objeto?
Há a predominância da técnica não apenas sobre outras formas de relação com a natureza, mas acima de tudo das relações entre os homens.
Não que as guerras anteriores ao “monstruoso desenvolvimento da técnica” fossem menos cruentas. O diferencial introduzido pela tecnologia, na guerra de 1914, além do óbvio incremento da capacidade de destruição da vida, foi o da velocidade e da imprevisibilidade dos ataques aéreos, que tornaram supérfluas as qualidades físicas e a experiência estratégica dos soldados.
Se a experiência não nos vincula ao patrimônio que herdamos, ele se torna um peso ou um adorno vazio. Nas primeiras décadas no século XX o homem moderno já se sentia pressionado a estar permanentemente disponível para acolher o novo, fosse ele qual fosse. A velocidade das mudanças que se generalizaram a partir da guerra exigiu que as pessoas de despojassem tanto de sua própria história quanto da memória de seus antepassados.
Na vivência cotidiana dos sobreviventes, habitantes das cidades devastadas e reconstruídas, era necessário impedir as invasões do psiquismo pelas reminiscências espontâneas (fragmentos vivos do passado no presente), por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, porque a memória de tantas referências destruídas tornaria a vida insuportável; em segundo, para manter a atenção consciente trabalhando a todo o vapor a fim de promover as reações adequadas e imediatas aos estímulos e solicitaçõe4s do novo mundo.
Me alinho a Susan Sontag, para quem não faz sentido se estabelecer a idéia de uma pós-modernidade sem que nenhuma das contradições características da modernidade tenha sido superada e poucas de suas promessas tenham sido cumpridas.
A invasão do Real sobre o psiquismo que não dispõe de recursos de linguagem para simbolizá-lo é chamada pela psicanálise de trauma. Ao destruir as redes de representação psíquica que acolhem novos eventos e lhes conferem sentido, o trauma destrói, pelo menos em parte, o valor da experiência. Em termos freudianos, o excesso de energia não ligada que invade o psiquismo exige repetidamente um movimento de retorno à cena traumática que toma duas vias psíquicas opostas. Ao mesmo tempo que atende à tentativa de simbolização- ao lugar a energia livre a uma cadeia de representações, a repetição do trauma torna-se presa do movimento repetitivo característico do gozo da pulsão de morte: daí a conexão, não tão óbvia quanto parece, entre vivência traumática e episódios depressivos.
O oposto de experiência é chamado por Benjamin de vivência, compatível com o “presente comprimido”. O que Benjamin designa por vivência corresponde ao que, do vivido, produz sensações e reações imediatas mas não modifica necessariamente o psiquismo.
O sucesso de grande parte de nossas ações cotidianas, que exigem respostas rápidas a estímulos contínuos, depende de não nos deixemos tomar pelos devaneios, pelas fantasias, por reminiscências espontâneas. Essas formas “dilatadas” da atividade psíquica distraem os sujeitos das exigências impostas pelo presente absoluto.
É evidente o sentimento de mundo vazio, ou de vida vazia, que decorre da supremacia da vivência sobre a experiência. A suposta falta de tempo para o devaneio e outras atividades psíquicas “improdutivas” exclui exatamente aquelas que proveem um sentido (imaginário) à vida, assim como as atividades da imaginação, filhas do ócio e do abandono. Pela mesma razão também se desvaloriza, por ser “inútil” ou “contraproducente” a experiência do inconsciente.
Um saber que pode ser passado adiante e que enriquece o vivido não apenas paras aquele a quem a experiência é transmitida, mas também para aquele que a transmite. É no ato da transmissão que a vivência ganha o estatudo de experiência, de modo que não faz sentido, em Benjamin, a idéia de experiência individual. Assim como um significante representa o sujeito para outro significante, assim como nenhum ato de linguagem se completa fora da relação com o outro, o sentido e o saber extraídos de uma vivência só adquirem o estatuto de experiência no momento em que aquele que os viveu consegue compartilhá-los com alguém.
Em Benjamin, a experiência é incompatível tanto com a temporalidade veloz quanto com a sobrecarga de solicitações que recaem sobre a consciência. A condição da experiência benjaminiana é antes o ócio que a atividade. “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”.
Viver a vida sem ter de tomar para si o duro encargo de ser o guardião solitário de todo o vivido: tal possibilidade de deixa-se estar no fluxo temporal parece inatingível para os indivíduos desgarrados da temporalidade coletiva, no mundo contemporâneo.
De todas as experiências subjetivas que a história deixou para trás, talvez a mais perdida, para o sujeito contemporâneo, seja a do abandono da mente à lenta passagem das horas: tempo do devaneio, do ócio prazeroso, dedicado a contar e rememorar histórias.
Uma experiências que os jovens buscam recuperar através do uso de certas drogas não excitante como a maconha, que fumam sozinhos ou em grupo- nesse caso, a troca de experiência ajuda a atenuar a angústia ante o retorno da temporalidade recalcada.
Uma das marcas importantes da virada freudiana foi ter deslocado a consciência do lugar prestigioso que ocupava nas psicologias, até a sua época. Em Freud, o conceito de psiquismo não só se confunde com o de consciência, como praticamente o exclui. “A consciência não pode ser um caráter geral dos processos anímicos, senão apenas uma função específica dos mesmos”.
O trabalho da consciência de aparar os choques do mundo externo e interno é o mais pobre dos trabalhos psíquicos.
Situada na borda do aparelho psíquico, a consciência teria a função de anteparo contra os estímulos provindos do mundo externo, assim como de regular as sensações de prazer e desprazer provenientes do interior do aparelho.
“A camada exterior protegeu com sua própria morte as demais camadas, mais profundas, de um destino análogo, uma vez que, para o organismo vivo, a proteção contra as excitações é mais importante que a recepção das mesmas”.
A consciência é um aparato defensivo que, em última instância, permite que o sujeito viva no mundo, sob as mais diferentes condições. Possibilita que ele suporte os choques das percepções que lhe chegam sem que ele tenha escolhido, ou se preparado para elas. A relação da consciência com a memórias é pontual: limita-se a função de reconhecimento dos estímulos percebidos. Nisto consiste o valor do trabalho psíquico de organizar percepções inesperada, surpreendentes- por isso mesmo, potencialmente traumáticas, liga-las a uma rede de representações que lhe conferem sentido e transformar a marca dessas percepções em lembranças, de modo que sua repetição possa ser acolhida pelo psiquismo na forma de uma significação conhecida. Mas se a consciência nasce no lugar das primeiras marcas mnêmicas, por sua vez os atos de rememoração, de evocação da lembrança, exigem a desativação provisório da atenção consciente. O instante da rememoração depende do abandono da atenção consciente.
O Real, na teoria lacaniana, corresponde ao irrepresentável.
A expressão corriqueira “preciso disso para ontem” expressa bem tal desvalorização da duração presente, a única na qual o corpo existe, respira, age- duração que é também a temporalidade psíquica do sujeito que espera pela satisfação. Queremos “tudo ao mesmo tempo agora”: o tempo comprimido e aparentemente pleno de ofertas/demandas de gozo, que caracteriza a sociedade contemporânea, é cúmplice, senão coautor, do sentimento de vazio que abate os depressivos. Parece que nada falta aos que se precipitam na velocidade exigida por essa demanda.
A tecnologia tanto provoca quanto acompanha as mudanças subjetivas dos homens, já oferece uma aparente solução para o vazio da experiência da sociedade contemporânea: os aparelhinhos de registrar nossa existência no tempo parecem tentar substituir o trabalho imaginário da memória. Celulares e máquinas fotográficas computadorizadas oferecem às pessoas a imagem instantânea de cada momento vivido, de modo a garantir que, pelo menos nas férias ou nas noites de sábado, algum acontecimento tenha merecido registro- se não no psiquismo, ao menos na telinha destinada, também ela, à rápida superação.
É notável o efeito social do caráter instantâneo da reprodução fotográfica, que relegou as velhas polaroides à prateleira das velharias.
Os grupos que se reúnem na tentativa de compartilhar um momento inesquecível dedicam-se freneticamente a registrar as provas incontestáveis de sua felicidade. Se a foto não corresponder à imagem esperada, é fácil apaga-la e substitui-la por outra, até se obter uma edição perfeita da noitada ou do fim de semana. Que por sua vez terá sido todo ele ocupado pela própria atividade de perpetuar sua existência fugaz numa foto perfeita.
Não sei se devemos considerar o afã em registrar em imagem todos os momentos da existência apenas como efeito das inovações tecnológicas e dos apelos narcísicos com que elas se oferecem aos consumidores.
Talvez a necessidade de testemunhar, por meio de fotografias ou de registros em vídeo, os chamados “bons momentos da vida” revele exatamente o empobrecimento da experiência que Benjamin atribuiu, desde o início do século XX, ao lugar hiperdimensionado que a técnica ocupa na vida moderna.
Seria essa necessidade de registrar em imagens supostamente fidedignas cada momento vivido um sintoma de que a temporalidade socialmente regulada na vida contemporânea esteja encurtando a experiência subjetiva da duração?
Um dos efeitos dessubjetivantes da velocidade é o empobrecimento da imaginação: o que se busca, no instantâneo fotográfico, é uma espécie de atestado de que a vida, como aquition que n’est plus soeur du rêve, tenha sido de fato vivida.
Em um poema em prosa de 1863, “Les fenêtres”, Baudelaire retoma mais uma vez a aliança entre a vida e devaneio, ao escrever que aquilo que se enxerga através de uma janela aberta não se compara com o que se vê pela janela fechada. O poema é uma apologia do caráter misterioso do objeto de desejo, que excita a imaginação sem jamais se reduzir ao que os olhos podem ver.
“Talvez você me diga: tens certeza de que essa lenda é verdadeira? Que me importa o que seja a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que eu sou e o quê eu sou?”
Nós constituímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por não ser felizes. (Bruckner- a euforia perpétua: ensaio sobre o dever da felicidade.)
Dedicar-se a alguma coisa com alguém implica um projeto. Pode ser um projeto privado, é claro: um casamento, por exemplo.
Lacan se refere ao final da análise como o momento em que o sujeito pode encontrar sua satisfação através da associação com os outros, tendo em vista a realização de uma obra.
É quando o lugar do analista na transferência de um Outro supostamente demandante a quem o sujeito pretende servir, finalmente se revela vazio e o sujeito cai de sua posição fantasmática. Essa queda parece um agravamento do desamparo, mas não é: ao deparar-se com o fato de que o Outro é um lugar simbólico, vazio de significações, vazio de amor e de demandas de amor, o sujeito está em melhor condição de sustentar sua posição a partir do desejo. Condição bem menos confortável do que daquele que se imagina entregue às boas mãos de Deus, ou ao amor do Outro. Menos confortável e mais livre. Mais aberta à invenção, ao risco, à escolha.
Na contemporaneidade, a atual predominância dos imperativos de gozo sobre os imperativos de renúncia ao gozo, característico das formações superegoicas na era freudiana, não implica a destituição do supereu como representante psíquico da Lei e da ordem social, nem representa um afrouxamento de suas exigências. Ao contrário: sendo o imperativo de gozo, por definição, impossível de se cumprir e aliado da pulsão de morte, o que observa-se é que o superego tornou-se ainda mais rigoroso, mais exigente e mais cruel. Do ponto de vista do neurótico, não há diferença em culpar-se por falta ou por excesso de gozo.
A intolerância ao conflito predominante nas culturas do “bem estar”, cultura nas quais as ideias de felicidade e saúde psíquica se reduzem a projetos de conforto, segurança e autoafirmação. Para realizar tal projeto, não há melhor recurso do que a medicação: ela contribui para o apagamento do conflito psíquico ao agir no lugar do sujeito. Sob efeito da medicação, o sujeito não se dispõe contra si mesmo nem interroga as razões de seu mal-estar: vai pelo caminho mais curto, que consiste em tornar-se objeto de seu remédio.
A expectativa psiquiátrica é de que o apaziguamento do conflito seja a chave para garantir a manutenção da propagada “autoestima”: um indivíduo apaziguado é um indivíduo de acordo consigo mesmo, supostamente não dividido, mais inteiro. Em uma sociedade em que as pessoas circulam como mercadorias em oferta, um indivíduo “inteiro” não valeria muito mais do que um sujeito dividido e conflituado?
Afinal, o bem-estar não é a cura, porque curar-se significa ser capaz de sofrer, de tolerar o sofrimento. Estar curado, desse ponto de vista, não é simplesmente ser feliz, é ser livre.
A ideia psicanalítica de cura está longe de perseguir os ideais da emancipação “self-made”, que atormentam os sujeitos contemporâneos. Mas está igualmente distante de uma proposta de adequação à norma, seja ela a normalidade do sacrifício e da repressão que caracterizou o período em que Freud viveu e inventou a psicanálise, seja a da pseudo-transgressão em busca de novas formas de mais-de-gozar, que tornam ainda mais irresistível a servidão voluntária de nossos dias.
Seja qual for o semblant da normalidade criado em cada cultura, um dos critérios mais persistentes e mais invisíveis que define a adaptação à norma continua sendo a regulação social do tempo. Com o medicamento o depressivo obtem a capacidade de fazer as tarefas banais da vida cotidiana no tempo do outro, ainda que a vida continue lhe parecendo totalmente desprovida de interesse e valor.
A depressão decorre de um excesso de presença do Outro, que torna claudicante a simbolização da ausência.
“A arte do analista deve ser a de suspender as certezas do sujeito até que se consumem os seus últimos espelhismos”. Lacan.
O final da análise se apresenta quando o desejo do sujeito passa a comandar suas escolhas, que até então vinham se orientando na direção da (suposta) demanda do outro.
A passagem por uma análise deve restituir a esse que se instalou em um mundo desencantando a possibilidade de sonhar, de recordar e também de fantasiar, pois a fantasia é o suporte do desejo.
Na análise dos neuróticos, é necessário desinflar a fantasia que sustenta as “certezas” com que o sujeito se esquiva da castração simbólica.
A castração, em psicanálise, não é um vazio de morte: é o vazio pulsante a partir do qual emergem as moções de desejo.
Não se trata de crença, mas de aposta. Constrói-se assim uma fantasia, como expressão do desejo (sempre) inconsciente, em outro tempo verbal: em vez de o “assim deve ser” com que o neurótico tenta justificar suas escolhas como se agisse sob ordens; em vez da indiferença em relação às expectativas e aos acontecimentos que caracteriza a depressão, a fantasia em um final de análise pode se expressar num futuro mais-que-perfeito: quisera.
Nada- e ninguém- autoriza o depressivo a acreditar que sua fantasia há de se realizar. Ele apenas adquire a coragem de apostar nela.
Que as condições sociais da transmissão das narrativas na modernidade tenham sido praticamente destruídas não implica que as pessoas deixem de tentar atribuir valor e sentido a suas vidas, ao narrar repetidamente suas pequenas anedotas no círculo familiar ou no grupo de amigos.
O depressivo, em sua bem calculada posição de exceção que recusa todas as crenças, acredita piamente na mais tola delas: a de seu desligamento em relação ao laço social.
O neurótico tem horror ao vazio. Ele o preenche com fantasias, com dramas, com pequenas tragicomédias, com sintomas, com atuações.
Winnicott percebeu que a sensação de que “a vida é digna de ser vivida” não se origina tanto da experiência empírica com as eventuais gratificações que a vida oferece, mas é consequência da capacidade da criança criar a partir de suas percepções.
A essa capacidade, ele chama “apercepção criativa”. Na falta dela, a criança desenvolve uma “submissão com a realidade externa”. O mundo se lhe apresenta como um cenário inalterável que só exige dela a capacidade de submissão e adaptação.
Se do ponto de vista da direção da cura é importante que o analisando ultrapasse o campo narcísico das fantasias, das identificações e dos mecanismos de defesa de modo a possibilitar a emergência do sujeito do desejo, aquele que se submete a uma análise continua dependendo dos recursos do moi, do ego do jargão freudiano, para viver em meio a seus semelhantes. A diferença em relação a outras escolas é que a direção da cura, na psicanálise lacaniana, não tem nada a ver com o propósito de “fortalecer o ego”, e sim, ao contrário, visa proporcionar um esvaziamento do campo do imaginário.
Nesse caso, seria correto considerar a depressão como um mecanismo de defesa? Não vou por esse caminho. O sujeito se refugia na depressão justamente porque não dispõe de recursos para se defender da voracidade do Outro. Ao se encolher, no quarto, na cama, imóvel sob as cobertas, o depressivo tentar evitar o incesto que, na fantasia, lhe parece iminente. Só que em sua retirada, ele acaba por se colocar perigosamente à mercê do mesmo gozo mortífero que vinha tentando evitar, pois quanto mais ele recua, mais se coloca como que no colo do Outro.
A função da lei não é tornar o sujeito conformado, e sim potente, embora barrado. Potente porque barrado. O que não significa que, a cada nova empreitada movida pelo desejo, a angústia de castração não se renove.
As sucessivas operações de “reconstrução de objeto no eu” a que se refere Freud ao mesmo tempo que enriquecem os recursos do eu, possibilitam uma relativa liberdade em relação ao ideal, já que a cada identificação corresponde a uma perda, uma ferida narcísica.
O esconderijo do depressivo na cama, debaixo das cobertas, tem um sentido sobredeterminado: reproduz o aconchego do colo materno e, ao mesmo tempo, protege o sujeito da voracidade do Outro.
Se não há a possibilidade de fazer o que eu quero, então fico com o que eu já tenho, pensaria o depressivo.
O próprio fato de a mãe estar incluída na temporalidade acelerada da vida contemporânea faz com que ela se apresse, automaticamente, a atender da forma mais eficiente possível aos apelos da criança. O comportamento automático da rapidez e eficiência, característico das mães razoavelmente boas do terceiro milênio- mães excessivamente preocupadas com seu desempenho e angustiadas com o pouco tempo que poderão dedicar a seus bebês.
Não pensamos portanto no futuro depressivo como um bebê abandonado e mal-amado, mas como uma criança poupada, em demasia, da necessidade de suportar o que Freud chamou de tensão da necessidade.
Nas sociedades industriais em que existe um fosso entre o usuário da tecnologia e o trabalhador que domina os segredos de sua produção, a técnica propicia apenas uma maior velocidade ao fazer. Paradoxalmente, em vez da velocidade tecnológica proporcionar um ganho de tempo livre para o ócio, o devaneio, a construção compartilhada de narrativas, o incremento do lugar que a técnica ocupa na vida cotidiana deixa os sujeitos cada vez mais disponíveis apenas para o consumo de novos aparatos técnicos. O resultado desse conflito entre a desmoralização da experiência e a tecnologia é que o homem contemporâneo vive assolado pela utilização veloz e contínua de dezenas de aparelhos supostamente elaborados para ajuda-lo a economizar seu tempo.
Em segundo lugar, em parte como consequência disso, as crianças ocupam um lugar ambíguo na cultura: como ideal do gozo (perdido) de seus pais, mas também, paradoxalmente, como investimento no “mercado de futuros”. Essa espécie de duplo vínculo em que a criança está inserida faz com que os pais procurem, ao mesmo tempo, satisfazê-la plenamente (como se isso fosse possível) para maximizar sua felicidade, e estimulá-la ao máximo a fim de desenvolver desde cedo as potencialidades que deverão garantir uma boa colocação na disputa acirrada do mercado de trabalho.
É notável a ansiedade que se manifesta no excesso de atividades desses pequenos, expropriados da experiência de vazio temporal que inaugura o trabalho psíquico, estimula a fantasia e a criatividade e promove tanto a autoconfiança quanto a confiança no mundo. Não devemos confundir a autoconfiança com a propalada “autoestima” tão cara à escola norte-americana da ego-psychology, segundo a qual os pais precisam empreender todos os esforços para impedir arranhões no narcisismo de seus rebentos. A autoconfiança é o oposto da autoestima forjada de fora para dentro: funda-se sobre a experiência infantil de sobreviver à ausência temporária da satisfação promovida pela mãe ou por seus substitutos, assim como de suportar permanecer por alguns intervalos de tempo fora do alcance do olhar do Outro.
Os pais que se apressam a levar crianças ansiosas, hiperativas, tristes e/ou mal-educadas ao psiquiatra talvez revelem ter pretensões tão elevadas a respeito de suas crianças, que não suportam, eles próprios, ajuda-los a enfrentar as crises, as dores, as angústias e os momentos de instabilidade emocional da vida. A atenção à vida subjetiva das crianças, assim como à dos adultos, requer uma relação mais distendida com o tempo; episódios de luto ou de conflito próprios da infância e da adolescência podem custar a perda de um ano escolar, como o mau desempenho em atividades esportivas ou mesmo a perda de popularidade entre os amigos da escola- motivo de importante dor narcísica em uma sociedade em que o valor de cada um é avaliado a partir do “valor de gozo” que o grupo social lhe confere.
O que chamamos “realidade social” consiste, prioritariamente, em formações imaginárias compartilhadas por certos grupos ou pela sociedade inteira. O imaginário dá consistência e estabiliza as estruturas simbólicas que ordenam a vida social.
A popularidade da prática do bullying desde os primeiros anos de vida escola é sintomática dessa mentalidade. Copiada em algumas escolas brasileiras do ambiente de rivalidade dos colégios norte-americanos, tal prática consiste em escolher a criança mais frágil e humilhá-la sistematicamente. Segregação e exclusão são os grandes organizadores da vida social contemporânea.
O medo da rejeição e da humilhação agrava o sofrimento desses adolescente acostumados a medir seu valor, no grupo de referência, por sua capacidade de gozar e de se divertir.
As imagens imperativas e ininterruptas da indústria do espetáculo dispensam o trabalho subjetivo que articula a identificação à perda do objeto, uma vez que reduzem a zero o tempo que separa o momento da perda daquele da recuperação do objeto através da identificação imaginária. Em sua aparente diversidade, tais imagens emitem sempre os mesmos enunciados e os mesmos mandatos; a abundância das imagens não implica em diferenças significativas entre elas, nem institui um intervalo vazio para que o espectador se perceba diverso da imagem que o faz gozar.
O sentimento irredutível (a não ser nas crises psicóticas) de “possuir uma identidade” corresponde simplesmente à inscrição do sujeito no terreno da linguagem. É essa inscrição singular que nos permite dizer “este(a) sou eu”, de forma intransitiva, e manter essa certeza até mesmo em períodos críticos em que não nos sentimos capazes de completar essa frase com qualquer outro predicado.
Para a psicanálise, a não ser por esse traço mínimo que une o sujeito a seu lugar simbólico, a identidade é ilusória. O que não significa que a segurança (perdida) que ela representa não mobilize paixões.
Pode parecer contraditório que a expansão e a fragmentação das imagens difundidas por meio dos meios de comunicação promovam paixões identitárias, e não uma maior abertura das possibilidades no campo das identificações. Mas a aparente contradição teórica entre a oferta de imagens identificatórias e a segurança identitária que elas prometem não representa um impasse insolúvel.
Daí decorre que o sentimento de insuficiência seja a mais perfeita tradução contemporânea da velha culpa do sujeito diante dos imperativos de gozo do supereu, que se fazem mais rigorosos na medida em que se aliam aos significantes ordenadores da vida social.
A psicanálise entende o depressivo, assim como todo ser falante, como um sujeito que se deu mal na estratégia escolhida para esquivar-se de um desejo (sempre) enigmático. (...) O que a psicanálise oferece ao deprimido é a perspectiva de um percurso livre da pressa e da demanda do Outro, o que implica, entre outras, uma autorização para deixar de gozar. Livre dessa urgência, o analisando dispõe de um tempo distendido que caberá a ele preencher com sua fala, suas recordações, suas moções (tímidas, no início) de desejo.
O que se perde diante do tempo vazio é o sentido que o sujeito supõe que seus atos tenham para o Outro.
Maria Rita Kehl
O Tempo e o Cão
Centrado na razão à custa da eterna vigilância da consciência moral, obrigado a tornar-se senhor de seus impulsos e da imagem oferecida ao Outro, vivendo em permanente estado de alerta diante da feroz concorrência da economia capitalista emergente, o indivíduo estava fadado a sofrer as consequências sintomáticas do recalque que sustentava suas pretensões.
O Outro, na teoria lacaniana, diz respeito à dimensão simbólica que está na origem da divisão do sujeito. A face simbólica do Outro pode ser resumida como a existência necessária da linguagem que determina e precede a existência dos sujeitos. Mas o campo simbólico é sustentado subjetivamente por representações imaginárias, o imaginário provê consistência ao simbólico e à Lei que ele determina. A face imaginária do Outro repousa sobre as formas- estas sim, contingentes- através das quais, em cada cultura, a Lei simbólica se apresenta aos homens. A mãe e o pai, que introduzem o infans na linguagem, constituem as primeiras formações imaginárias do Outro, substituídas após o atravessamento do Édipo por figuras que exercem, no espaço público, alguma forma de autoridade. O professor, o líder político, o monarca, Deus, o parceiro amoroso, são os exemplos mais frequentes das diversas representações daquele a quem o sujeito neurótico dirige a pergunta: O que deseja de mim?
As sociedades modernas, caracterizadas pela mobilidade social e pela crescente liberdade nas escolhas individuais, tornaram as condições da inclusão e as regras de convívio cada vez mais abstratas. A complexidade das estruturas simbólicas, a partir do primórdios do capitalismo, tornou o campo do Outro inacessível ao saber (consciente) dos sujeitos sociais.
Em sociedades em que havia forte coesão entre as representações coletivas da função paterna, as pessoas estariam dispensadas de construir uma resposta neurótica ao conflito entre a satisfação pulsional e a Lei.
Lévi-Strauss- “Essa forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem”. Na modernidade o mito não desaparece, mas seu estatuto se transforma, de uma tradição coletiva para um “tesouro individual”.
Uma das características de nossa evolução consiste na transformação paulatina da coerção externa em coerção interna, pela ação de uma instância psíquica especial do homem, o supereu, que vai acolhendo a coerção externa entre seus mandamentos.
O neurótico em psicanálise é aquele que se esforça para submeter-se às exigências do supereu, como se com isso lhe fosse possível reverter a perda subjetiva que se consuma pela passagem pelo Édipo e recuperar a unidade (impossível) com o Outro.
Na modernidade que o Outro se torna inconsciente.
A mania seria um triunfo passageiro sobre a melancolia; a luta inconsciente entre eu e supereu, com vitórias parciais de um lado e de outro do campo de batalha, faz dos estados maníacos e melancólicos duas faces indissociáveis da mesma estrutura psíquica.
Depressão é o nome contemporâneo para os sofrimentos decorrentes da perda do lugar dos sujeitos junto a versão imaginária do Outro.
Não é possível precisar se todos esses crescimentos estatísticos revelam um aumento epidêmico das depressões (assim como dos transtornos bipolares e da hiperatividade infantil), um aperfeiçoamento de métodos diagnósticos, uma consequência da expansão da indústria farmacêutica ou, na pior das hipóteses, uma atuação conjunta de todos esses fatores.
As novas estratégias de venda dos laboratórios farmacêuticos já não se limitam à divulgação dos remédios lançados no mercado. A ênfase dos panfletos distribuídos nos consultórios de médicos e psiquiatras recai sobe os novos critérios de diagnóstico das depressões, de modo a incluir um número crescente de manifestações de tristeza, luto, irritabilidade e outras expressões de conflito subjetivo entre “transtornos” indicativos de depressão a serem tratados por emprego de medicamentos.
Assistimos, assim, a uma patologização generalizada da vida subjetiva, cujo efeito paradoxal é a produção de um horizonte cada vez mais depressivo.
O projeto pseudocientífico de subtrair o sujeito- sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta- a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações que acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade, de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico- o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante a finitude, do desamparo e da solidão humana.
A maior parte dos lucros da indústria farmacêutica depende de alguns poucos remédios para os quais sempre se buscam novos usos. Se tais novos usos não surgem por meio de experimentos, recorre-se à publicidade de certos males- ou seja- a convencer as massas de que alguns de seus estados de ânimo são, na verdade, doenças que requerem tratamento.
Nos congressos internacionais de psiquiatria, mais do que a propaganda de produtos lançados no mercado, o que e divulgam são novos métodos diagnósticos capazes de detectar os menores sinais de distúrbios depressivos.
À aparente eficiência dos tratamentos medicamentosos soma-se a paixão pela segurança que caracteriza a sociedade contemporânea para a qual a ideia de que a vida seja um percurso pontuado por riscos inevitáveis parece um escândalo.
A aliança entre os ideais de precisão científica e de eficiência econômica produz uma visão fantasiosa da vida humana como um investimento no mercado de futuros, cujo sentido depende de se conseguir garantir, de antemão, os ganhos que tal investimento deverá render. É evidente que, e acordo com a lógica subjacente a esse projeto, o campo incerto da subjetividade, tributário do movimento errante do desejo inconsciente, deve ser reduzido à sua dimensão mais insignificante a fim de que nenhum rodeio inútil se interponha entre cada projeto de vida e sua meta final. Tal desvalorização dos meios (e dos rodeios, dos descaminhos, da errância e de todas as formas de digressão que permitem certo usufruto desinteressado do tempo) em prol de uma finalidade urgente e inquestionável favorece o sentimento genuinamente depressivo de desvalorização da vida.
O mais recente “avanço” da psiquiatia consiste em substituir, pontualmente, comportamentos indesejados por outros mais adequados. Dessa forma, não há razão para não se oferecer medicamentos também às pessoas consideradas “normais”, de forma a eliminar um ou outro comportamento indesejado, um ou outro estado de humor desagradável, e assim possibilitar a conquista de um estado de ânimo estável e sem conflitos, uma saúde mental “melhor que bem”.
Encontramos com frequência, entre os depressivos, transtornos na percepção temporal revelador por aqueles que sentem que o tempo cotidiano, sem a sustentação de uma fantasia a respeito do futuro, tornou-se um tempo estagnado, um tempo que não passa.
O desejo, em psicanálise, é por definição inconsciente- e seu objeto, perdido. A posição do sujeito ante o objeto (perdido) de seu desejo determina seu lugar no fantasma, de onde ele ensaia sua versão inconsciente a respeito do que o Outro quer dele. Dessa posição, sobre a qual se sustenta a estrutura, o neurótico, forçosamente, deverá cair- se não na vida, certamente ao longo de uma análise.
É quando as tradições perdem a força de determinar os destinos das novas gerações, quando a verdade deixa de ser entendida como revelação divina e se multiplica em saberes especializados, quando o Outro deixa de estar representado imaginariamente, por uma única e incontestável figura de autoridade, que o indivíduo é obrigado a se afirmar como centro de suas referências e a se responsabilizar por estabelecer alguma concordância entre a verdade do ser e o Bem, entendido como convicção coletiva estabilizadora do laço social.
O que varia da passagem das sociedades tradicionais para a modernidade é, por um lado, o estatuto imaginário do Outro, que se fragmenta em inúmeras representações; por outro lado, o aumento da responsabilidade do eu- que se individualiza- por suas escolhas, o que favorece a culpa neurótica.
A vergonha é um afeto causado quando um homem é ferido em sua imagem pública, enquanto o tormento da culpa é uma questão de foro íntimo, provocada pela (auto) condenação da consciência moral. Em um sociedade guerreira, em que o valor do homem se estabelece em ato diante de todos os seus companheiros, o sentido público da vergonha é mais determinante do que a culpa.
Do século XV em diante, foi o campo do Outro que se desarticulou e perdeu a unidade mantida durante séculos sob a hegemonia da Igreja católica.
A racionalidade aparentemente infinita do capitalismo consiste em fazer com que as resistências, conscientes ou inconscientes, trabalhem a seu favor, incluindo até mesmo as representações recalcadas do mal-estar entre os valores agregados às mercadorias.
A desconflitualização do psíquico é concomitante, se não tributária, da desconflitualização do campo social.
A constituição do psiquismo é tributaria do Outro, tanto no sentido simbólico do campo (aberto) da linguagem quanto em sua face imaginária, ancorada em personagens- aos quais o sujeito atribui, na vida social ou na esfera das relações amorosas, alguma forma de poder- que substituem os primeiros seres de amor da vida infantil, como porta-vozes dos significantes mestres que organizam o laço social.
Do ponto de vista da constituição dos sujeitos, sabemos que a separação entre a criança e o Outro materno produz a perda de um objeto (dito objeto a, inaugurador de toda a série de objetos aos quais o desejo há de dirigir seu impulso) que, por sua própria natureza, é impossível de ser reencontrado. Esse objeto perdido passa a funcionar então como causa do desejo. Não confundir com o suposto “objeto do desejo”, promessa e/ou fantasia com a qual estamos sempre a nos iludir; o desejo não tem objeto que o satisfaça, é puro impulso em busca do reencontro impossível com um objeto perdido. A rigor, todos os objetos podem satisfazê-lo de maneira fugaz, e nenhum há de satisfazê-lo antes da morte, único objeto total ao alcance do humano.
Para não ter de suportar tal destino de desejar o que já não há e arcar com a falta, o sujeito inventa o que Lacan chamou de fantasma: um modo de negociar o objeto a, em sua função de causa do desejo, em troca da demanda do Outro. O neurótico se defende da castração “ao transportar para o Outro a função do a”. Negocia o desejo pela demanda, e tenta trocar a (in)satisfação pela esperança de gozo. Já não é ele quem deseja, é o Outro que o demanda. Atender a essa demanda é um modo de fazer-se objeto para o gozo do Outro; operação tentadora, mas impossível.
A instância do supereu, herdeira das interdições e das moções de gozo que caracterizam o complexo de Édipo, também pode ser considerada uma representante da realidade social no psiquismo, a operar através da imposição de ideais de eu e da regulação da oferta de modalidades de gozo. O supereu exige que o sujeito goze, ao mesmo tempo que o proíbe de gozar. A solução de compromissos entre esses dois mandatos impossível se dá via da adesão do eu aos ideais que, em última instância, são formações imaginárias organizadoras do campo social, variáveis de cultura para cultura. Os ideais de eu nunca são puramente individuais, eles se formam pela via das identificações que incluem necessariamente o Outro, os Outros.
Nas sociedades industriais, ou superindustriais, do século XXI, a face imaginária do Outro vem sendo positivada constantemente por obra da indústria do espetáculo, cuja oferta de imagens recobre quase toda a face do planeta. A essa grande dispersão das representações imaginárias do Outro, ao corresponder, necessariamente, igual multiplicidade de mandatos e de enunciados. Uma das características mais paradoxais da chamada sociedade do espetáculo é justamente essa combinação entre uma grande variedade de imagens que se oferecem à identificação e à repetição praticamente idêntica dos enunciados que elas veiculam.
É possível que, no atual estágio do capitalismo, a condição de desamparo do sujeito moderno ante o descentramento e a multiplicação das formações imaginárias que, dessa forma, impossibilitam uma representação estável e socialmente compartilhada do Outro esteja em vias de superação.
O avanço das técnicas de sondagem das “motivações inconscientes” do chamado público consumidor joga um papel decisivo nesse quadro, o que torna possível afirmar que uma série de enunciados que dizem respeito às representações recalcadas deixaram de ser inconscientes. Eles participam da constituição da realidade social através de seus principais arautos: as mensagens publicitárias emitidas não apenas pelos outdoors, o rádio e a televisão, mas também pela internet, pelos aparelhos de celular, ou embutidas na forma de merchandising na teledramaturgia e no cinema, assim como em algumas notícias de jornais.
Vale ressaltar que, em Guy Debord, a ideia de “sociedade do espetáculo” não se reduz à mera constatação de que somos permanentemente assediados por uma abundante oferta de imagens. O conceito de espetáculo não se resume a um conjunto de imagens, mas é uma relação social entre indivíduos mediada por imagens.
As imagens, por sua própria condição, se oferecem como resposta ao enigma do inconsciente pela via de produção de sentido, que é a mesma via da produção de identificações. Dessa forma, o movimento errático do desejo cede lugar ao gozo promovido pelo encontro com a imagem que encobre a falta de objeto.
De certa forma, é como se a réplica do fantasma, que situa o sujeito do inconsciente diante da demanda de gozo do Outro, se apresentasse aos sujeitos e a partir de um outro lugar, socialmente compartilhado e alheio ao inconsciente.
A face imaginária do Outro, na vida contemporânea vem coincidir com os mais primitivos mandatos do supereu, prometendo atender aos anseios recalcados ao longo da travessia edípica: anseio de abrir mão da vida do desejo em troca de uma oferta (imaginária) de gozo.
A aparência de multiplicidade de imagens ofertadas, com a consequente pulverização das demandas do Outro, na vida contemporânea, é enganosa. Sob as mais variadas imagens e os mais diversos enunciados, a versão imaginária do desejo do Outro, hoje, tem tanta consistência como na Idade Média quando a hegemonia da Igreja católica ainda não fora abalada pelas teses de Lutero. O que o Ouro exige do sujeito contemporâneo é sempre que ele goze. Muito. Que essa seja uma das faces contraditórias do imperativo superegoico – “goze!/não goze!”- só faz tornar essa exigência, promovida a condição organizadora do laço social, ainda mais angustiante e opressiva para os sujeitos.
Ao contrário do que pode parecer, uma cultura regida por imperativos de gozo não produz necessariamente sujeitos mais independentes da crueldade superegoica.
A culpa neurótica em relação ao supereu tora-se ainda mais impagável sob tais condições, em que os ideais parecem não exigir das pessoas mais do que disposição de usufruir dos prazeres do presente, de cultivar o corpo e entregar-se às fantasias associadas aos apelos do consumo. O sujeito culpado não leva em conta, porque não sabe disso, a impossibilidade de responder ao gozo ao qual é convidado ou, do ponto de vista do supereu, lhe é exigido. O sentimento de insuficiência, o medo de perder o amor dessa instância que representa, no psiquismo, a esperança de recuperar a fatia e narcisismo e a porção de gozo perdidas torna os neuróticos candidatos à depressão.
Não cabe ao psicanalista proibir as pessoas de gozar. Mas ele pode ser o porta voz da autorização para não gozar. É importante que se possa dizer, publicamente: “Vocês podem não gozar”.
É preciso levar em consideração ainda, o modo como o imperativo do gozo se articula aos ideais de eficácia econômica. Tal articulação subverteu os ideais de renuncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud. Na sociedade contemporânea, o gozo fálico não se obtém mais apenas nos breves intervalos de tempo roubados ao trabalho alienado. Na passagem do capitalismo produtivo ao capitalismo consumista, a porção subjetiva cedida pelos cidadãos, trabalhadores ou não, à acumulação do capital não diminuiu, embora em muitas profissões as jornadas de trabalho tenham até sido encurtadas. O capitalismo contemporâneo apropria-se e alimenta-se de algo mais íntimo do que a força do trabalho, o capitalismo alimenta-se do mais-de-gozar.
É fácil perceber os efeitos de vazio subjetivo produzidos por tal apropriação, a despeito de todas as engenhocas que o mercado oferece para compensar os sujeitos dessa expropriação do que lhe é mais genuíno: a invenção singular dos destinos da pulsão.
O que esse trabalho produz? Nada mais nada menos que os sujeitos de que o atual estágio do capitalismo necessita: sujeitos esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo, portanto disponíveis para responder aos objetos e imagens que os convocam; sujeitos ligados ao puro “aqui e agora” de um presente veloz, incapazes de imaginar um devir que não seja apenas a reprodução da temporalidade encurtada característica do capitalismo contemporâneo.
Isso gira no vazio, na mesma velocidade com que se produzem as concentrações do capital virtual na bolsa de valores: um dinheiro a que não corresponde nenhuma produção de riquezas. Custa-nos entender o óbvio, lembrado por Marx em o capital: a produção de riquezas, em uma sociedade, não é idêntica ao acúmulo de dinheiro. O dinheiro, como mercadoria circulante universal, só equivale à riqueza nos casos em que possibilita a intensificação das trocas, não só materiais, mas também simbólicas. Riqueza, em Marx, significa intensificação e circulação de capacidades, de necessidades, de invenções, de potencial humano. Uma economia que apenas concentre capital não produz uma sociedade rica, do mesmo modo que as razões do mercado estão longe de produzir uma sociedade justa ou razoável.
Acima das trocas humanas de riqueza, uma nova forma abstrata de poder, chamada mercado financeiro, regula a vida social, sustentada pela crença globalmente compartilhada que faz equivaler acumulação de dinheiro à riqueza. Em consequência, os desígnios do capital financeiro, sempre fora do alcance do homem comum, não podem ser contrariados.
Ao apropriar-se dos signos de gozo circulantes no imaginário social, os valores da eficiência econômica estendem-se a todos os âmbitos da vida, numa escala sem precedentes na história.
Uma sociedade governada pelo vale-tudo das razões de mercado torna-se ingovernável, além de produzir uma descrença generalizada na potência dos homens como agentes de transformação política, descrença esta que remete ao abatimento fatalista dos depressivos.
Marx já previa a dimensão de fantasia necessária para sustentar o feitiche da mercadoria, mas não poderia prever a dimensão superindustrial da produção dessa mercadoria inefável, cujo valor é todo sustentado pela fantasia: a mercadoria imagem.
A fantasia, antes uma mera pressuposição, tornou-se dominante na relação do sujeito com a mercadoria.
Ora, fazer sumir a falta significa fazer sumir o sujeito do desejo, daí decorre que a angústia participa inevitavelmente desse circuito, empurrando os sujeitos ainda mais, ora em direção às compensações do gozo imaginário, ora em direção aos efeitos anestesiantes das drogas e psicofármacos.
As mercadorias deslizam pelo oceano imaginário como objetos a mais, sempre portadoras de apelos mais intensos, por entre sujeitos que deslizam como mercadorias.
O sujeito da cultura do espetáculo observa o mundo como se fosse um eterno álbum familiar preenchido não pelas imagens de seus parentes, mas pelos acontecimentos do mundo das celebridades.
Assim, se produzem os sujeitos expropriados da experiência do inconsciente e do desejo, ávidos pelo consumo de imagens que lhe indiquem quem eles são.
Pois o que distingue a sociedade do consumo não é o fato que eles comprem incessantemente os bens em oferta, acessíveis a poucos, mas que todos estejam de acordo com a ideia de que tanto o sentido da vida social como o valor dos sujeitos sejam dados pelo consumo. Embora poucos possuam recursos para consumir os bens em oferta, as imagens que ocupam a esfera pública são acessíveis a todos.
O que se considera ação humana aqui são ações capazes de produzir alterações no campo do simbólico. Escolher a marca de cerveja, exibir o tênis de grife ou o carro do ano, malhar o corpo na academia e outras tantas modalidades dessa agitação que preenche todo o tempo não ocupado pelo trabalho ficam excluídas dessa categoria.
É difícil, até mesmo para os críticos e para os descontentes, imaginar as condições de superação de uma ordem social sustentada bem menos por estratégias de interdição do que por técnicas de sedução.
O aspecto do sintoma, que é o de ser uma tentativa (ainda que mal-sucedida) de cura.
O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado.
Os depressivos, cujo número parece aumentar na proporção direta dos imperativos de felicidade, são incômodos na medida em que questionam esse projeto.
A dolorosa consciência de sua inadaptação é confirmada pelo empenho da indústria farmacêutica em devolver os depressivos ao convívio regular com o coro dos contentes.
A diferença é que, se nos primeiros séculos do capitalismo industrial era importante curar o neurótico de suas inibições para fazê-lo produzir, hoje as neurociências se empenham em animar os depressivos para torna-los aptos a consumir. Ou, pelo menos, a desejar consumir, a estar de acordo com as demandas de consumo- essa forma avançada de poder disciplinar que normaliza a vida social.
Winnicott em O brincar e a realidade, relaciona a falta de criatividade ao fatalismo:
É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, em que o mundo em todos os seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e que não vale a pena viver a vida.
O depressivo, em sua estranha recusa a acreditar nos semblante da felicidade, está muito mais próximo de sua vida desejante do que ele imagina.
O tempo é o tecido da nossa vida. (Antônio Cândido)
O psiquismo se instaura a partir do trabalho de representação do objeto de satisfação esperado, na tentativa de anular o angustiante intervalo de tempo vazio.
O tempo é instituído, para cada sujeito, no intervalo entre a tensão de necessidade e a satisfação; mas como, para o filhote humano, a satisfação de necessidades depende inteiramente de que um Outro queira se ocupar dele, tal intervalo logo se apresenta a ele como o tempo que separa a demanda do Outro a possibilidade de o sujeito responder a ela. Dito de outra maneira: o sujeito do desejo, em psicanálise, é um intervalo sempre em aberto, eu pulsa entre o tempo próprio da pulsão e o tempo urgente da demanda do Outro.
“Apressa-te lentamente”: essa máxima latina foi adotada na juventude por Italo Cavino por representar “ a intensidade e a constância do trabalho intelectual.
A apologia da rapidez não exclui “os prazeres do retardamento”, que na literatura são finamente representados pelas digressões.
Freud em “A interpretação dos sonhos”, nos faz entender que o tempo ocioso que antecede as descobertas criativas, os “achados” aparentemente espontâneos que nos ocorrem independentemente dos processos conscientes de cálculos e raciocínios é o tempo do pensamento inconsciente. O instante do Eureka! Na criação artística, na pesquisa intelectual, no setting analítico etc; depende de um tempo interior, singular para cada sujeito e impossível de se determinar.
“Aproveitar bem o tempo” é um dos imperativos da vida contemporânea que corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriam para o desfrute da vida privada nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e pelas proibições da vida religiosa nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado, a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, essa forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que ornam a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção.
Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso aproveitar o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso.
É poderosa a pregnância imaginária dos acontecimentos que se desenrolam com no tempo. A esse registro chamamos memória, lembrança, rememoração. A memória obedece às leis que regem o imaginário. É ela quem no dá alguma medida, tanto individual quanto coletiva, do fio do tempo, e estabelece uma consistente impressão de continuidade entre os infinitos instantes que compões uma vida. Arrisco propor que o passado, cuja inscrição psíquica se dá através da memória, conserva o tempo em sua versão imaginária. É a memória que confere uma permanência imaginária a essa forma negativa do tempo, que é o passado. A função da memória, participante do mesmo registro psíquico do corpo e do narcisismo, é essencial para manter nosso sentimento imaginário de identidade ao longo da vida; ela funciona como garantia de que algo possa se conservar diante da passagem inexorável do tempo que conduz tudo o que existe em direção ao fim e à morte. Já o tempo como categoria abstrata do pensamento pertence ao registro do simbólico. O trabalho humano de simbolização e organização do Real não cessa de contar e demarcar o tempo em séculos, lustros, décadas, anos, meses, semanadas, dias, horas, minutos, segundos, frações de segundo... Marcações puramente simbólicas, destituídas de significação. Por fim, a pura passagem do tempo em direção à morte de todas as coisas, esse transcorrer inexorável, anterior ou independente de sua regulação social- esta que Freud afirma não ser passível de representação psíquica, a não ser pelo recurso à espacialização-, pertence ao registro do Real.
Se todo recalcado é inconsciente, nem todo inconsciente é recalcado. O estado inconsciente em que permanece a maior parte de nosso acervo mnêmico deve-se justamente ao fato de que a consciência só é capaz de trabalhar com escassas magnitudes de estímulos.
Embora essencial, a função da atenção consciente representa apenas uma fração muito pobre do trabalho psíquico, assim como é psicologicamente pobre o presente, tempo da ação orientada pala atenção e vigiada pela consciência.
A marcação abstrata do tempo é vigiada pelo trabalho da consciência em sua função de adaptar o eu às exigências da realidade- que não é outra coisa senão uma construção social. A sensação corriqueira do tempo como curso contínuo, linear e abstrato é produto da consciência, cujo trabalho dobrado de prestar atenção a si mesma e ao que advém de outros sistemas obriga-a a elaborar apenas quantidades escassas do muno exterior.
O que o sistema P-Cc bloqueia para responder ao excesso de estímulos presentes não é a função pontual de reconhecimento desses estímulos- que é uma as funções da memória-, mas a da rememoração, atividade psíquica prazerosa na qual o sujeito se entrega ao fluxo das associações entre estímulos presentes e vivências passadas. A sensação reconfortante de continuidade entre passado e presente que permite ao sujeito reconhecer-se no que Freud chamou de “obra psíquica de sucessivas épocas da vida” é produzida pela associação entre várias séries de marcas mnêmicas.
Já o tempo marcado pela autovigilância da consciência parece angustiosamente vazio, independentemente das atividades que o preenche, em decorrência dessa mesma autopercepção que a consciência exerce durante seu curso.
Freud compara a permeabilidade da consciência ao “bloco mágico”, objeto usado, na época, como bloco de rascunho em que se podia escrever e apagar indefinidamente as anotações.
O “eu oficial” seria o ego freudiano, cuja estabilidade ao longo do tempo depende justamente do trabalho da memória.
Abordarem a diferença estabelecida por Walter Benjamin entre experiência e vivência, de modo a analisar o sentimento bastante generalizado de empobrecimento da vida, nas condições superestimulantes e velozes da modernidade.
Com as solicitações simultâneas do celular, do controle remoto, do mouse e das câmeras digitais- já se entendeu que essas maquinetas nos solicitam, exigem que nos mantenhamos sempre ligados nelas, e não o contrário.
Ao deprimir-se, ele tenta fugir do excesso de ofertas (entendidas como demandas para o sujeito) do Outro para se refugiar debaixo das cobertas.
O que parece, em nossa obsessão pelo futuro, um excesso de desejo (e de vida) não passa do pathos contemporâneo: é a impaciência, essa aflição que nos precipita em direção ao vazio por não tolerarmos a impossibilidade de parar o tempo.
O medo da morte levou o homem do século XXI, com ajuda das biociências, a prolongar consideravelmente o seu tempo de vida biológica, sem com isso tornar-se mais capaz de desfrutar da duração. Hoje é possível viver com saúde durante oito ou nove décadas sem perder a sensação que de o tempo continua curto, de que a vida é a soma de instantes velozes que passam sem deixar marcas significativas.
Onde está o sujeito do desejo, no presente contraído que domina a temporalidade contemporânea? Se, por um lado o neurótico é aquele que adia ao máximo o momento do encontro com o desejo, também podemos sugerir que a pressa interessa a ele, uma vez que ela suprime o intervalo por onde o je tende a se manifestar.
O ideal de um neurótico obsessivo, por exemplo, para que seu sintoma esteja em sintonia com os ideais do eu, seria reduzir a vida a um tempo de puro fazer. Nesse sentido, não há muita diferença entre a pressa e seu aparente antípoda, a inibição: ambas conseguem evitar que algo de significativo, como a ação impulsionada pelo desejo, aconteça.
Em todo caso, nem a pressa nem a inação podem poupar indefinidamente o neurótico de se defrontar, mais cedo ou mais tarde, com o vazio produzido por essa temporalidade reduzida, na medida do possível, à dimensão do puro presente. De maneira não idêntica à do trabalho mecânico ou burocrático, mas similar, pode-se deduzir que o império do corpo- tanto do corpo que trabalha quanto daquele que “malha” para produzir apenas sua própria forma perfeita, atividades que no estágio atual do capitalismo pouco se diferenciam- desfavorecem tanto o compromisso com o desejo como o sentimento de continuidade da existência.
Sua lentidão encobre a impaciência característica dos que tiveram sua demanda antecipada pelo Outro e se vedem incapacitados para preencher esse inquietante rodeio entre o nascimento e a morte, ao qual chamamos de vida.
Pois o que é o desejo senão o movimento que rodeia o vazio deixado por seu objeto?
Há a predominância da técnica não apenas sobre outras formas de relação com a natureza, mas acima de tudo das relações entre os homens.
Não que as guerras anteriores ao “monstruoso desenvolvimento da técnica” fossem menos cruentas. O diferencial introduzido pela tecnologia, na guerra de 1914, além do óbvio incremento da capacidade de destruição da vida, foi o da velocidade e da imprevisibilidade dos ataques aéreos, que tornaram supérfluas as qualidades físicas e a experiência estratégica dos soldados.
Se a experiência não nos vincula ao patrimônio que herdamos, ele se torna um peso ou um adorno vazio. Nas primeiras décadas no século XX o homem moderno já se sentia pressionado a estar permanentemente disponível para acolher o novo, fosse ele qual fosse. A velocidade das mudanças que se generalizaram a partir da guerra exigiu que as pessoas de despojassem tanto de sua própria história quanto da memória de seus antepassados.
Na vivência cotidiana dos sobreviventes, habitantes das cidades devastadas e reconstruídas, era necessário impedir as invasões do psiquismo pelas reminiscências espontâneas (fragmentos vivos do passado no presente), por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, porque a memória de tantas referências destruídas tornaria a vida insuportável; em segundo, para manter a atenção consciente trabalhando a todo o vapor a fim de promover as reações adequadas e imediatas aos estímulos e solicitaçõe4s do novo mundo.
Me alinho a Susan Sontag, para quem não faz sentido se estabelecer a idéia de uma pós-modernidade sem que nenhuma das contradições características da modernidade tenha sido superada e poucas de suas promessas tenham sido cumpridas.
A invasão do Real sobre o psiquismo que não dispõe de recursos de linguagem para simbolizá-lo é chamada pela psicanálise de trauma. Ao destruir as redes de representação psíquica que acolhem novos eventos e lhes conferem sentido, o trauma destrói, pelo menos em parte, o valor da experiência. Em termos freudianos, o excesso de energia não ligada que invade o psiquismo exige repetidamente um movimento de retorno à cena traumática que toma duas vias psíquicas opostas. Ao mesmo tempo que atende à tentativa de simbolização- ao lugar a energia livre a uma cadeia de representações, a repetição do trauma torna-se presa do movimento repetitivo característico do gozo da pulsão de morte: daí a conexão, não tão óbvia quanto parece, entre vivência traumática e episódios depressivos.
O oposto de experiência é chamado por Benjamin de vivência, compatível com o “presente comprimido”. O que Benjamin designa por vivência corresponde ao que, do vivido, produz sensações e reações imediatas mas não modifica necessariamente o psiquismo.
O sucesso de grande parte de nossas ações cotidianas, que exigem respostas rápidas a estímulos contínuos, depende de não nos deixemos tomar pelos devaneios, pelas fantasias, por reminiscências espontâneas. Essas formas “dilatadas” da atividade psíquica distraem os sujeitos das exigências impostas pelo presente absoluto.
É evidente o sentimento de mundo vazio, ou de vida vazia, que decorre da supremacia da vivência sobre a experiência. A suposta falta de tempo para o devaneio e outras atividades psíquicas “improdutivas” exclui exatamente aquelas que proveem um sentido (imaginário) à vida, assim como as atividades da imaginação, filhas do ócio e do abandono. Pela mesma razão também se desvaloriza, por ser “inútil” ou “contraproducente” a experiência do inconsciente.
Um saber que pode ser passado adiante e que enriquece o vivido não apenas paras aquele a quem a experiência é transmitida, mas também para aquele que a transmite. É no ato da transmissão que a vivência ganha o estatudo de experiência, de modo que não faz sentido, em Benjamin, a idéia de experiência individual. Assim como um significante representa o sujeito para outro significante, assim como nenhum ato de linguagem se completa fora da relação com o outro, o sentido e o saber extraídos de uma vivência só adquirem o estatuto de experiência no momento em que aquele que os viveu consegue compartilhá-los com alguém.
Em Benjamin, a experiência é incompatível tanto com a temporalidade veloz quanto com a sobrecarga de solicitações que recaem sobre a consciência. A condição da experiência benjaminiana é antes o ócio que a atividade. “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”.
Viver a vida sem ter de tomar para si o duro encargo de ser o guardião solitário de todo o vivido: tal possibilidade de deixa-se estar no fluxo temporal parece inatingível para os indivíduos desgarrados da temporalidade coletiva, no mundo contemporâneo.
De todas as experiências subjetivas que a história deixou para trás, talvez a mais perdida, para o sujeito contemporâneo, seja a do abandono da mente à lenta passagem das horas: tempo do devaneio, do ócio prazeroso, dedicado a contar e rememorar histórias.
Uma experiências que os jovens buscam recuperar através do uso de certas drogas não excitante como a maconha, que fumam sozinhos ou em grupo- nesse caso, a troca de experiência ajuda a atenuar a angústia ante o retorno da temporalidade recalcada.
Uma das marcas importantes da virada freudiana foi ter deslocado a consciência do lugar prestigioso que ocupava nas psicologias, até a sua época. Em Freud, o conceito de psiquismo não só se confunde com o de consciência, como praticamente o exclui. “A consciência não pode ser um caráter geral dos processos anímicos, senão apenas uma função específica dos mesmos”.
O trabalho da consciência de aparar os choques do mundo externo e interno é o mais pobre dos trabalhos psíquicos.
Situada na borda do aparelho psíquico, a consciência teria a função de anteparo contra os estímulos provindos do mundo externo, assim como de regular as sensações de prazer e desprazer provenientes do interior do aparelho.
“A camada exterior protegeu com sua própria morte as demais camadas, mais profundas, de um destino análogo, uma vez que, para o organismo vivo, a proteção contra as excitações é mais importante que a recepção das mesmas”.
A consciência é um aparato defensivo que, em última instância, permite que o sujeito viva no mundo, sob as mais diferentes condições. Possibilita que ele suporte os choques das percepções que lhe chegam sem que ele tenha escolhido, ou se preparado para elas. A relação da consciência com a memórias é pontual: limita-se a função de reconhecimento dos estímulos percebidos. Nisto consiste o valor do trabalho psíquico de organizar percepções inesperada, surpreendentes- por isso mesmo, potencialmente traumáticas, liga-las a uma rede de representações que lhe conferem sentido e transformar a marca dessas percepções em lembranças, de modo que sua repetição possa ser acolhida pelo psiquismo na forma de uma significação conhecida. Mas se a consciência nasce no lugar das primeiras marcas mnêmicas, por sua vez os atos de rememoração, de evocação da lembrança, exigem a desativação provisório da atenção consciente. O instante da rememoração depende do abandono da atenção consciente.
O Real, na teoria lacaniana, corresponde ao irrepresentável.
A expressão corriqueira “preciso disso para ontem” expressa bem tal desvalorização da duração presente, a única na qual o corpo existe, respira, age- duração que é também a temporalidade psíquica do sujeito que espera pela satisfação. Queremos “tudo ao mesmo tempo agora”: o tempo comprimido e aparentemente pleno de ofertas/demandas de gozo, que caracteriza a sociedade contemporânea, é cúmplice, senão coautor, do sentimento de vazio que abate os depressivos. Parece que nada falta aos que se precipitam na velocidade exigida por essa demanda.
A tecnologia tanto provoca quanto acompanha as mudanças subjetivas dos homens, já oferece uma aparente solução para o vazio da experiência da sociedade contemporânea: os aparelhinhos de registrar nossa existência no tempo parecem tentar substituir o trabalho imaginário da memória. Celulares e máquinas fotográficas computadorizadas oferecem às pessoas a imagem instantânea de cada momento vivido, de modo a garantir que, pelo menos nas férias ou nas noites de sábado, algum acontecimento tenha merecido registro- se não no psiquismo, ao menos na telinha destinada, também ela, à rápida superação.
É notável o efeito social do caráter instantâneo da reprodução fotográfica, que relegou as velhas polaroides à prateleira das velharias.
Os grupos que se reúnem na tentativa de compartilhar um momento inesquecível dedicam-se freneticamente a registrar as provas incontestáveis de sua felicidade. Se a foto não corresponder à imagem esperada, é fácil apaga-la e substitui-la por outra, até se obter uma edição perfeita da noitada ou do fim de semana. Que por sua vez terá sido todo ele ocupado pela própria atividade de perpetuar sua existência fugaz numa foto perfeita.
Não sei se devemos considerar o afã em registrar em imagem todos os momentos da existência apenas como efeito das inovações tecnológicas e dos apelos narcísicos com que elas se oferecem aos consumidores.
Talvez a necessidade de testemunhar, por meio de fotografias ou de registros em vídeo, os chamados “bons momentos da vida” revele exatamente o empobrecimento da experiência que Benjamin atribuiu, desde o início do século XX, ao lugar hiperdimensionado que a técnica ocupa na vida moderna.
Seria essa necessidade de registrar em imagens supostamente fidedignas cada momento vivido um sintoma de que a temporalidade socialmente regulada na vida contemporânea esteja encurtando a experiência subjetiva da duração?
Um dos efeitos dessubjetivantes da velocidade é o empobrecimento da imaginação: o que se busca, no instantâneo fotográfico, é uma espécie de atestado de que a vida, como aquition que n’est plus soeur du rêve, tenha sido de fato vivida.
Em um poema em prosa de 1863, “Les fenêtres”, Baudelaire retoma mais uma vez a aliança entre a vida e devaneio, ao escrever que aquilo que se enxerga através de uma janela aberta não se compara com o que se vê pela janela fechada. O poema é uma apologia do caráter misterioso do objeto de desejo, que excita a imaginação sem jamais se reduzir ao que os olhos podem ver.
“Talvez você me diga: tens certeza de que essa lenda é verdadeira? Que me importa o que seja a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que eu sou e o quê eu sou?”
Nós constituímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por não ser felizes. (Bruckner- a euforia perpétua: ensaio sobre o dever da felicidade.)
Dedicar-se a alguma coisa com alguém implica um projeto. Pode ser um projeto privado, é claro: um casamento, por exemplo.
Lacan se refere ao final da análise como o momento em que o sujeito pode encontrar sua satisfação através da associação com os outros, tendo em vista a realização de uma obra.
É quando o lugar do analista na transferência de um Outro supostamente demandante a quem o sujeito pretende servir, finalmente se revela vazio e o sujeito cai de sua posição fantasmática. Essa queda parece um agravamento do desamparo, mas não é: ao deparar-se com o fato de que o Outro é um lugar simbólico, vazio de significações, vazio de amor e de demandas de amor, o sujeito está em melhor condição de sustentar sua posição a partir do desejo. Condição bem menos confortável do que daquele que se imagina entregue às boas mãos de Deus, ou ao amor do Outro. Menos confortável e mais livre. Mais aberta à invenção, ao risco, à escolha.
Na contemporaneidade, a atual predominância dos imperativos de gozo sobre os imperativos de renúncia ao gozo, característico das formações superegoicas na era freudiana, não implica a destituição do supereu como representante psíquico da Lei e da ordem social, nem representa um afrouxamento de suas exigências. Ao contrário: sendo o imperativo de gozo, por definição, impossível de se cumprir e aliado da pulsão de morte, o que observa-se é que o superego tornou-se ainda mais rigoroso, mais exigente e mais cruel. Do ponto de vista do neurótico, não há diferença em culpar-se por falta ou por excesso de gozo.
A intolerância ao conflito predominante nas culturas do “bem estar”, cultura nas quais as ideias de felicidade e saúde psíquica se reduzem a projetos de conforto, segurança e autoafirmação. Para realizar tal projeto, não há melhor recurso do que a medicação: ela contribui para o apagamento do conflito psíquico ao agir no lugar do sujeito. Sob efeito da medicação, o sujeito não se dispõe contra si mesmo nem interroga as razões de seu mal-estar: vai pelo caminho mais curto, que consiste em tornar-se objeto de seu remédio.
A expectativa psiquiátrica é de que o apaziguamento do conflito seja a chave para garantir a manutenção da propagada “autoestima”: um indivíduo apaziguado é um indivíduo de acordo consigo mesmo, supostamente não dividido, mais inteiro. Em uma sociedade em que as pessoas circulam como mercadorias em oferta, um indivíduo “inteiro” não valeria muito mais do que um sujeito dividido e conflituado?
Afinal, o bem-estar não é a cura, porque curar-se significa ser capaz de sofrer, de tolerar o sofrimento. Estar curado, desse ponto de vista, não é simplesmente ser feliz, é ser livre.
A ideia psicanalítica de cura está longe de perseguir os ideais da emancipação “self-made”, que atormentam os sujeitos contemporâneos. Mas está igualmente distante de uma proposta de adequação à norma, seja ela a normalidade do sacrifício e da repressão que caracterizou o período em que Freud viveu e inventou a psicanálise, seja a da pseudo-transgressão em busca de novas formas de mais-de-gozar, que tornam ainda mais irresistível a servidão voluntária de nossos dias.
Seja qual for o semblant da normalidade criado em cada cultura, um dos critérios mais persistentes e mais invisíveis que define a adaptação à norma continua sendo a regulação social do tempo. Com o medicamento o depressivo obtem a capacidade de fazer as tarefas banais da vida cotidiana no tempo do outro, ainda que a vida continue lhe parecendo totalmente desprovida de interesse e valor.
A depressão decorre de um excesso de presença do Outro, que torna claudicante a simbolização da ausência.
“A arte do analista deve ser a de suspender as certezas do sujeito até que se consumem os seus últimos espelhismos”. Lacan.
O final da análise se apresenta quando o desejo do sujeito passa a comandar suas escolhas, que até então vinham se orientando na direção da (suposta) demanda do outro.
A passagem por uma análise deve restituir a esse que se instalou em um mundo desencantando a possibilidade de sonhar, de recordar e também de fantasiar, pois a fantasia é o suporte do desejo.
Na análise dos neuróticos, é necessário desinflar a fantasia que sustenta as “certezas” com que o sujeito se esquiva da castração simbólica.
A castração, em psicanálise, não é um vazio de morte: é o vazio pulsante a partir do qual emergem as moções de desejo.
Não se trata de crença, mas de aposta. Constrói-se assim uma fantasia, como expressão do desejo (sempre) inconsciente, em outro tempo verbal: em vez de o “assim deve ser” com que o neurótico tenta justificar suas escolhas como se agisse sob ordens; em vez da indiferença em relação às expectativas e aos acontecimentos que caracteriza a depressão, a fantasia em um final de análise pode se expressar num futuro mais-que-perfeito: quisera.
Nada- e ninguém- autoriza o depressivo a acreditar que sua fantasia há de se realizar. Ele apenas adquire a coragem de apostar nela.
Que as condições sociais da transmissão das narrativas na modernidade tenham sido praticamente destruídas não implica que as pessoas deixem de tentar atribuir valor e sentido a suas vidas, ao narrar repetidamente suas pequenas anedotas no círculo familiar ou no grupo de amigos.
O depressivo, em sua bem calculada posição de exceção que recusa todas as crenças, acredita piamente na mais tola delas: a de seu desligamento em relação ao laço social.
O neurótico tem horror ao vazio. Ele o preenche com fantasias, com dramas, com pequenas tragicomédias, com sintomas, com atuações.
Winnicott percebeu que a sensação de que “a vida é digna de ser vivida” não se origina tanto da experiência empírica com as eventuais gratificações que a vida oferece, mas é consequência da capacidade da criança criar a partir de suas percepções.
A essa capacidade, ele chama “apercepção criativa”. Na falta dela, a criança desenvolve uma “submissão com a realidade externa”. O mundo se lhe apresenta como um cenário inalterável que só exige dela a capacidade de submissão e adaptação.
Se do ponto de vista da direção da cura é importante que o analisando ultrapasse o campo narcísico das fantasias, das identificações e dos mecanismos de defesa de modo a possibilitar a emergência do sujeito do desejo, aquele que se submete a uma análise continua dependendo dos recursos do moi, do ego do jargão freudiano, para viver em meio a seus semelhantes. A diferença em relação a outras escolas é que a direção da cura, na psicanálise lacaniana, não tem nada a ver com o propósito de “fortalecer o ego”, e sim, ao contrário, visa proporcionar um esvaziamento do campo do imaginário.
Nesse caso, seria correto considerar a depressão como um mecanismo de defesa? Não vou por esse caminho. O sujeito se refugia na depressão justamente porque não dispõe de recursos para se defender da voracidade do Outro. Ao se encolher, no quarto, na cama, imóvel sob as cobertas, o depressivo tentar evitar o incesto que, na fantasia, lhe parece iminente. Só que em sua retirada, ele acaba por se colocar perigosamente à mercê do mesmo gozo mortífero que vinha tentando evitar, pois quanto mais ele recua, mais se coloca como que no colo do Outro.
A função da lei não é tornar o sujeito conformado, e sim potente, embora barrado. Potente porque barrado. O que não significa que, a cada nova empreitada movida pelo desejo, a angústia de castração não se renove.
As sucessivas operações de “reconstrução de objeto no eu” a que se refere Freud ao mesmo tempo que enriquecem os recursos do eu, possibilitam uma relativa liberdade em relação ao ideal, já que a cada identificação corresponde a uma perda, uma ferida narcísica.
O esconderijo do depressivo na cama, debaixo das cobertas, tem um sentido sobredeterminado: reproduz o aconchego do colo materno e, ao mesmo tempo, protege o sujeito da voracidade do Outro.
Se não há a possibilidade de fazer o que eu quero, então fico com o que eu já tenho, pensaria o depressivo.
O próprio fato de a mãe estar incluída na temporalidade acelerada da vida contemporânea faz com que ela se apresse, automaticamente, a atender da forma mais eficiente possível aos apelos da criança. O comportamento automático da rapidez e eficiência, característico das mães razoavelmente boas do terceiro milênio- mães excessivamente preocupadas com seu desempenho e angustiadas com o pouco tempo que poderão dedicar a seus bebês.
Não pensamos portanto no futuro depressivo como um bebê abandonado e mal-amado, mas como uma criança poupada, em demasia, da necessidade de suportar o que Freud chamou de tensão da necessidade.
Nas sociedades industriais em que existe um fosso entre o usuário da tecnologia e o trabalhador que domina os segredos de sua produção, a técnica propicia apenas uma maior velocidade ao fazer. Paradoxalmente, em vez da velocidade tecnológica proporcionar um ganho de tempo livre para o ócio, o devaneio, a construção compartilhada de narrativas, o incremento do lugar que a técnica ocupa na vida cotidiana deixa os sujeitos cada vez mais disponíveis apenas para o consumo de novos aparatos técnicos. O resultado desse conflito entre a desmoralização da experiência e a tecnologia é que o homem contemporâneo vive assolado pela utilização veloz e contínua de dezenas de aparelhos supostamente elaborados para ajuda-lo a economizar seu tempo.
Em segundo lugar, em parte como consequência disso, as crianças ocupam um lugar ambíguo na cultura: como ideal do gozo (perdido) de seus pais, mas também, paradoxalmente, como investimento no “mercado de futuros”. Essa espécie de duplo vínculo em que a criança está inserida faz com que os pais procurem, ao mesmo tempo, satisfazê-la plenamente (como se isso fosse possível) para maximizar sua felicidade, e estimulá-la ao máximo a fim de desenvolver desde cedo as potencialidades que deverão garantir uma boa colocação na disputa acirrada do mercado de trabalho.
É notável a ansiedade que se manifesta no excesso de atividades desses pequenos, expropriados da experiência de vazio temporal que inaugura o trabalho psíquico, estimula a fantasia e a criatividade e promove tanto a autoconfiança quanto a confiança no mundo. Não devemos confundir a autoconfiança com a propalada “autoestima” tão cara à escola norte-americana da ego-psychology, segundo a qual os pais precisam empreender todos os esforços para impedir arranhões no narcisismo de seus rebentos. A autoconfiança é o oposto da autoestima forjada de fora para dentro: funda-se sobre a experiência infantil de sobreviver à ausência temporária da satisfação promovida pela mãe ou por seus substitutos, assim como de suportar permanecer por alguns intervalos de tempo fora do alcance do olhar do Outro.
Os pais que se apressam a levar crianças ansiosas, hiperativas, tristes e/ou mal-educadas ao psiquiatra talvez revelem ter pretensões tão elevadas a respeito de suas crianças, que não suportam, eles próprios, ajuda-los a enfrentar as crises, as dores, as angústias e os momentos de instabilidade emocional da vida. A atenção à vida subjetiva das crianças, assim como à dos adultos, requer uma relação mais distendida com o tempo; episódios de luto ou de conflito próprios da infância e da adolescência podem custar a perda de um ano escolar, como o mau desempenho em atividades esportivas ou mesmo a perda de popularidade entre os amigos da escola- motivo de importante dor narcísica em uma sociedade em que o valor de cada um é avaliado a partir do “valor de gozo” que o grupo social lhe confere.
O que chamamos “realidade social” consiste, prioritariamente, em formações imaginárias compartilhadas por certos grupos ou pela sociedade inteira. O imaginário dá consistência e estabiliza as estruturas simbólicas que ordenam a vida social.
A popularidade da prática do bullying desde os primeiros anos de vida escola é sintomática dessa mentalidade. Copiada em algumas escolas brasileiras do ambiente de rivalidade dos colégios norte-americanos, tal prática consiste em escolher a criança mais frágil e humilhá-la sistematicamente. Segregação e exclusão são os grandes organizadores da vida social contemporânea.
O medo da rejeição e da humilhação agrava o sofrimento desses adolescente acostumados a medir seu valor, no grupo de referência, por sua capacidade de gozar e de se divertir.
As imagens imperativas e ininterruptas da indústria do espetáculo dispensam o trabalho subjetivo que articula a identificação à perda do objeto, uma vez que reduzem a zero o tempo que separa o momento da perda daquele da recuperação do objeto através da identificação imaginária. Em sua aparente diversidade, tais imagens emitem sempre os mesmos enunciados e os mesmos mandatos; a abundância das imagens não implica em diferenças significativas entre elas, nem institui um intervalo vazio para que o espectador se perceba diverso da imagem que o faz gozar.
O sentimento irredutível (a não ser nas crises psicóticas) de “possuir uma identidade” corresponde simplesmente à inscrição do sujeito no terreno da linguagem. É essa inscrição singular que nos permite dizer “este(a) sou eu”, de forma intransitiva, e manter essa certeza até mesmo em períodos críticos em que não nos sentimos capazes de completar essa frase com qualquer outro predicado.
Para a psicanálise, a não ser por esse traço mínimo que une o sujeito a seu lugar simbólico, a identidade é ilusória. O que não significa que a segurança (perdida) que ela representa não mobilize paixões.
Pode parecer contraditório que a expansão e a fragmentação das imagens difundidas por meio dos meios de comunicação promovam paixões identitárias, e não uma maior abertura das possibilidades no campo das identificações. Mas a aparente contradição teórica entre a oferta de imagens identificatórias e a segurança identitária que elas prometem não representa um impasse insolúvel.
Daí decorre que o sentimento de insuficiência seja a mais perfeita tradução contemporânea da velha culpa do sujeito diante dos imperativos de gozo do supereu, que se fazem mais rigorosos na medida em que se aliam aos significantes ordenadores da vida social.
A psicanálise entende o depressivo, assim como todo ser falante, como um sujeito que se deu mal na estratégia escolhida para esquivar-se de um desejo (sempre) enigmático. (...) O que a psicanálise oferece ao deprimido é a perspectiva de um percurso livre da pressa e da demanda do Outro, o que implica, entre outras, uma autorização para deixar de gozar. Livre dessa urgência, o analisando dispõe de um tempo distendido que caberá a ele preencher com sua fala, suas recordações, suas moções (tímidas, no início) de desejo.
O que se perde diante do tempo vazio é o sentido que o sujeito supõe que seus atos tenham para o Outro.
Maria Rita Kehl
O Tempo e o Cão
terça-feira, janeiro 18, 2011
Masculinidades na Revista Vip Exame
Revistas como Placar, especializadas em esportes; Trip, com uma pauta de esportes radicais, música e comportamento jovem; as tradicionais revistas eróticas como Palyboy, Ele Ela, Sexy, Hustrler, entre outras, com a tradicional ênfase na nudez feminina; e uma diversidade de títulos econômicos, como Exame, Você S.A., Info Exame, Isto É Dinheiro, que têm nos homens seu principal público.
Diante de tantos títulos assim enumerados, o leitor pode ser levado a pensar que se torna cada vez mais difícil definir pontos em comum entre propostas tão díspares.
Ou seja, além de seres “homens”, não há necessariamente muito em comum entre o leitor de Palyboy, Placar ou Exame. Aparentemente, num mercado vibrante e concorrencial, no qual revistas nascem e se multiplicam constantemente em busca de seu nicho específico, cada vez mais os estilos de vida diferenciados de cada leitor são uma força desagregadora da noção de “masculino” como unificadora dos homens.
A questão que me orienta neste trabalho, portanto, é exatamente esta: tendo em vista esse contexto de um mercado de revistas masculinas pluralizado e diversificado, a idéia de masculinidade como um atributo que une todos esses leitores ainda faz sentido? Será que, ao analisar as diversas revistas voltadas a esse público, perceberemos que não há nada nelas que recoloque o masculino como um fator de unificação? Ou, pelo contrário, apesar da grande diversidade, poderemos falar sim em um substrato comum de masculinidade, que é de certa forma recorrente em todas as propostas editoriais?
Para realizar este estudo, não fiz um levantamento exaustivo de todo o mercado de revistas masculinas. Concentrei-me em três delas, que apresentam propostas editoriais consideradas discrepantes (pelos próprios sujeitos que as produzem) daquilo que é considerado hegemônico pelo mercado.
A Vip Exame, como buscarei demonstrar, apesar de ser uma tentativa de alargamento das possibilidades do “masculino” na representação, recoloca uma oposição fundamental entre masculino/feminino e entre homossexual/heterossexual. Da mesma forma o faz a revista gay Sui Generis, na qual, além disso, vemos uma tradução para o contexto brasileiro de pressupostos de uma identidade gay norte-americana, ou seja, um público gay relativamente uniforme e coeso em torno de alguns atributos fundamentais, em oposição aos heterossexuais. A revista Homens se destaca desse conjunto por ser a única que não trabalha de forma clara com nenhuma oposição fixa entre homossexual/heterossexual. Nessa revista, os atos sexuais e os sujeitos neles envolvidos transitam de forma muito mais fluida entre essas categorias. O que não significa que ela seja de alguma maneira “libertária” ou mais arrojado do que as outras.
Como procurarei aclarar, se as revistas VIP e Sui Generis trabalham com recortes de classe, de gênero e de idade bastante monolíticos, valorizando somente o homem jovem, de classe média, branco, de corpo saudável e recolocando divisões entre masculino/feminino e hetero/homossexual, a revista Homens, por sua vez, reonstrói uma ordem de gênero eminentemente hierárquica, em que o masculino domina o feminino, o ativo domina o passivo, como princípios recorrentes.
O fenômeno da fragmentação do mercado editorial em nichos diferenciados de leitores não leva necessariamente à desconstrução de algumas distinções extremamente arraigadas no nosso pensamento.
O anunciante que deseja atingir aquele leitor em potencial irá anunciar na revista feita sob medida para receber seu anúncio. As redações trabalha, portanto, em larga medida, com potencialidades, quase nunca tendo clareza de quem lê a revista de fato ou se ela é consumida a partir dos objetivos traçados pelos jornalistas.
Segundo Mira, a partir dos anos 70, a Abril busca uma mudança nas suas práticas de produção, monitorando cada vez mais o leitor. Assim, as suas revistas buscarão, progressivamente consolidar uma imagem específica, que fale a um certo público e não outro. Surge a percepção no interior do mercado publicitário, de que essa especialização é necessária e mais rentável em termos da eficiência da propagando.
Mencionei a Playboy por ser ela constantemente citada pelos editores da VIP como seu contraponto principal dentro do mercado. Ao buscarem fazer uma revista masculina diferente, tinham a Playboy como referência principal desse tipo de publicação, do que seria a proposta tradicional de uma revista masculina. Ensaios de nudez, um machismo mais exacerbado, uma proximidade maior com a pornografia era características das quais a VIP queria se afastar por serem mais próprias da Playboy.
Segundo Mira (1997), a Playboy se firmou a partir de 1975, quando é lançada no país pela Editora Abril, como o novo padrão para as revistas masculinas. Nessa época, ainda era chamada de Homen, devido à censura à marca Playboy.
Pornografia entendida como o discurso por excelência veiculador do obsceno: daquilo que se mostra e deveria ser escondido. A exibição do indesejável: o sexo fora do lugar. Espaço do proibido, do não dizível, do censurado: daquilo que não deve ser, mas é. A pornografia grita e cala, colocando lado a lado o escândalo e o silêncio. É nesse jogo de esconde-esconde que encontramos o seu sentido, mas é também por causa dele que se torna difícil defini-la.
Todas abordam as imagens eróticas como consumíveis, de certa forma isentas de emoção, bastante padronizadas em sua apresentação do sexo, seja em imagens masculinas ou femininas.
Vip
Apesar de o sexo ainda ser o elemento mais importante do conteúdo das reportagens e mulheres serem mostradas em profusão, elas nunca aparecem totalmente nuas.
A redação é composta de dez membros (quatro homens e seis mulheres), o que por si só já é interessante por trata-se de uma revista masculina cujos produtores em sua maioria são mulheres. Mesmo assim, predomina uma estrutura hierárquica em que os homens retêm cargos superiores.
Já uma revista gay apresenta um questionamento fundamental da masculinidade: o desejo do homem não precisa ser necessariamente por mulheres; ao contrário, pode se apresentar múltiplo e indefinido.
G Magazine: desde que dois famosos jogadores de futebol do time paulista Corinthians (dinei e vampeta) decidiram se despir completamente para a revista, algo antes impensável para celebridades, a mídia vem dando destaque e incorporando a existência desse periódico com maior facilidade, anternado o contexto de invisibilidade e boicote que essas publicações sofriam pelo mercado mais amplo.
Uma questão fundamental na comparação entre as duas revistas são as suas diferentes perspectivas do que significa ser gay com relação ao preconceito, à necessidade de “assumir-se gay”, ou “sair do armário”, assim como em relação à dinâmica do desejo homoerótico. Enquanto a Sui Generis é muito mais militante no tocante à auto-estima, assumindo uma postura bem próxima aos movimentos gays norte-americanos de busca de uma identidade unívoca e coesa, a Homens trata do desejo de forma muito mais fluida.
Cerca de 40% das matérias de cada edição são fotos e os trabalhos em que predomina o texto não passam de 20%. É uma revista, portanto, muito mais vista do que lida.
A publicidade aqui atua com todo seu poderia econômico, ainda que com fins comerciais, com base na luta contra o preconceito. Pos mais questionáveis que possam ser as boas intenções desse anunciante, elas são muito mais explícitas do que em qualquer propaganda existente em nosso país. Não nos esqueçamos também de que qualquer revista, seja nacional ou estrangeira, gay ou heterossexual, necessita de um bom contingente de público leitor para atrair anunciantes. A questão econômica é implacável: uma publicação que não mobiliza um público potencialmente consumidor não obtém anunciantes.
SG Press
Com exceção de uma única mulher, todos os jornalistas eram homens gays.
Na publicação gay, o tema do preconceito é fundante. Mesmo não se tratando de um veículo militante ligado a um grupo político, a revista assume uma espécie de “militância de mercado”, trabalhando positivamente a auto-estima do leitor.
A fim de dar conta de como as revistas analisadas produzem suas representações sobre a masculinidade, busquei conjugar a análise do conteúdo com a observação da dinâmica de trabalho nas duas redações. A combinação de ambas as estratégias de pesquisa permite melhor compreender como são produzidas as mensagens impressas, como os repórteres interagem e como as relações intersubjetivas no contexto da produção interferem na mensagem final.
Esta questão é importante, pois, como mostrarei adiante, as diretrizes que norteiam o trabalho dos repórteres são objetos de embates, conflitos e discussões constantes dentro da redação. Esses conflitos não são livres, ou seja, os agentes não têm todos o mesmo poder de decisão e de interferência sobre o que será publicado. A imagem de uma equipe coesa e unificada em torno de uma proposta editorial está longe daquilo que pude observar nas redações.
A questão do leitor se associa a um outra, quando penso no tipo de trabalho específico realizado na redação, o trabalho jornalístico. Durante as minhas observações, quando estava interessado em perceber relações entre os repórteres e suas representações de gênero, na verdade o que eles buscavam o tempo todo era fabricar uma boa matéria, dentro do padrões do que seria considerado “bom jornalismo”, seguindo as regras específicas daquele campo. Para chegar aonde eu queria, que eram as percepções de gênero que orientam os repórteres, não podia basear-me diretamente em seus textos, pois não havia um discurso elaborado sobre a masculinidade, era produto de um embate de uma multiplicidade de discursos, dissonantes, provenientes dos mais variados autores, que colidiam e interagiam na chamada prática jornalística. Ao tentarem fazer uma boa reportagem, esses agentes, imbuídos de suas representações plurais de gênero e recorrendo às mais diversas fontes para apoiar suas afirmativas, acabavam por constituir materiais culturais, as reportagens, reveladoras de uma coerência própria, não revelando o processo de produção das mensagens e os conflitos nele envolvidos.
Claro que há textos que explicitamente apresentam uma certa ideologia de homem ou do que deva ser a masculinidade, ou que expressam posições específicas. Mas não se deve negligenciar que a maioria dos materiais ali presentes foi feita por vários atores, que nem sempre concordam sobre o que seja ou deva ser o homem. Eles tentavam apenas seguir as normas do “bom jornalismo”.
Uma redação não representa um grupo uniforme de opiniões e nem todos estão de acordo quanto ao que deve ser publicado.
Outro debate recorrente na redação, que demonstra a preocupação constante com a “construção do leitor”, era sobre como deveria se portar um homem, qual masculinidade deveria ser debatida e promovida nas páginas da revista.(...) Esse exemplo mostra como cada profissional, ao ter uma visão ligeiramente destoante do que é o homem (e do que ele deve buscar ser), desloca também a implementação das diretrizes editoriais, que não definem quais roupas o homem deve usar ou quanto dinheiro deve gastar.
A influência do material estrangeiro, como fui descobrindo, é constante, desde a concepção do periódico até o trabalho diário de elaborar reportagens, ensaios fotográficos e temas para discussão naquele número.
A discussão sobre a “garota da capa” ocorre meses antes de a matéria ser publicada. Isso porque ela é o primeiro chamativo da revista, aquele que captura o leitor nas bancas. Ter na capa a foto certa faz toda a diferença na hora de calcular as vendas.
O interessante, do ponto de vista etnográfico é, portanto, que a dinâmica de trabalho desse periódico se pauta também sobre um leitor imaginado, sobre sua representação. As discussões na reunião de pauta da VIP, por exemplo, eram bastante fixadas ao tema sexo; era de suma importância para os repórteres e editores definir a “atitude” da revista frente a esse assunto; quanto espaço lhe deveria ser destinado, qual a linguagem a ser utilizada, até onde se deve ir com a liberalidade no seu tratamento, qual deve ser o “tom” utilizado ao abordar assuntos a eles relacionados. Todo o trabalho conjunto na reunião de pauta estava voltado para afinar o grupo em torno de uma proposta mais ou menos comum de atitude frente à revista, dadas as características específicas do leitor visado.
Uma função do jornalista ao elaborar representações sobre o leitor, inspirando-se em publicações estrangeiras: a de tradutor cultural. De alguma forma, esses profissionais operam uma investigação dos imaginários brasileiros da masculinidade ao pensar quem é o seu público-alvo, do que ele gosta e quais são seus anseios.
O “leitor da VIP”, que é real e está empiricamente dado, é também criado no processo mesmo de produção da revista, que tenta supostamente agradá-lo. Nesse processo de busca do consumidos, de seus gostos e características, os repórteres criam representações que orientam, em boa medida, o trabalho de reportagem. (p. 78)
These views are discerned through market research and letters to the editor, but the reader is also a product of the imagination of staff members who, as we have seen earlier, sometimes pay little attention to market research or reader feedback and intentionally let their own intuitions and ideas about ideal coverage stand for those of their readers. (Lutz e Collins, 1993: 217).
55 % dos leitores são homens.
Um homem que se preocupa com aparência e moda, cada vez mais autoconsciente de sua masculinidae enquanto atributo a ser construído e enquanto objeto de desejo sexual.
Há também o recurso da “garota da capa”, a inevitável figura feminina sensual chamando a atenção do público masculino, e o uso constante de imagens de mulheres seminuas, com a quase ausência de imagens de homens. Existe um apelo à heterossexualidade “natural” dos leitores, ao sensual e ao sexual, mesmo que de forma mais “refinada” ou “inteligente”, como os editores gostam de dizer.
Coloca o desejo heterossexual como pressuposto básico de qualquer masculinidade. Todas as matérias se direcionam ao homem que deseja mulheres e quer agradá-las ao máximo.
A editora faz recorrentemente matérias de comportamento e se vale de seus anos de experiência como especialista nessa área para validar a sua posição no mercado editorial, onde é conhecida como “jornalista de comportamento”, embora não tenha nenhuma formação específica ou formação acadêmica em Psicologia.
Os imaginários sobre o masculino e o feminino circulantes passam assim pelo crivo desse processo jornalístico e são tornados “notícia” ou “jornalismo”. Ou seja: ao passar por um método de trabalho desenvolvido e aprendido em faculdades, tais imaginários que circulam em toda a sociedade, as vivências dos repórteres, tornam-se matérias jornalísticas na mídia à qual esses personagens têm acesso. Dessa forma, tornam-se “informação”, pautada por especialistas (o que confirma a sua veracidade e validade científica) e pronta para ser consumida.
Nossa infinitamente rica pletora de identidades sexuais, nossos homens, mulheres, bichas, michês, viados, travestis, sapatões, monas, ades, monocos, saboeiras e assim por diante não são simples traduções dos homossexuais, heterossexuais e bissexuais que povoam as terras anglo-saxônicas. São personagens de um cenário de significações que têm sua história e lógica próprias.
Perceber que a multiplicidade existente na categoria “homem” pede uma abordagem que valorize a práticas e as negociações constantes de identidade que ocorrem diariamente nas relações sociais.
“Comer cu”, “ser chupado” são atividades sempre possíveis a esses sujeitos, duplamente personagens: nas fotos, representam dois rapazes que trabalham no borracheiro; na entrevista, encenam dois modelos viris ou “machos” que, por acaso, fizeram fotos para gays. Nunca temos acesso à prática sexual real desses sujeitos, o que nesse caso não interessa tanto quanto o imaginário que os circunda.
Mas essa heterossexualidade parece invocada muito mais vezes do que efetivamente praticada. Como os michês entrevistados “em profundidade” o revelam, gabar-se de heterossexualide soma pontos perante os clientes, que, em grande parte, procuram rapazes que não sejam homossexuais.
Um “hétero” estaria no topo da escala de masculinidade em relação aos outros, enquanto o travesti e o transexual estariam na proporção menos masculinas. A tendência é os mais femininos desejarem os mais masculinos, e vice-versa, mas não há um padrão fixo ou excludente.
A pluralidade de práticas homoeróticas no Brasil é enorme, não se esgotando nas concepções elaboradas no gueto ou no interior de movimentos políticos. A vivência “homossexual” ou “homoerótica” brasileira transcende o gueto e confunde-se com o modelo dominante heterossexual.
As novas teorias sobre o gênero, muitas delas realizadas sob o rótulo do “pós-estruturalismo”, fazem a crítica de categorias como “homem” e “mulher” enquanto identidades solidamente articuladas e imutáveis, ou mesmo necessárias ou inevitáveis.
Assim, aqueles segmentos que não se sentiam representados pelas reivindicações dos homossexuais libertários começaram a criticar as táticas desse movimento, que buscava uma estratégia de assimilação (gays e lésbicas não são diferentes de heterossexuais na essência) e constituía uma base identitária sólida, coerente para o sujeito gay, a partir do chamado “orgulho gay”. Esse tipo de essencialismo identitário começou a ser criticado por se basear em valores de classe média brancos e não ser representativo de todos os sujeitos não heterossexuais.
Portanto, da mesma forma que a VIP, a Sui Generis investe na produção de uma lógica identitária, operando uma diferenciação entre homem e mulher (pois o gay nunca deve deixar de ser homem, recaindo nos estereótipos populares e homofóbicos da “bicha efeminada”, entre homo e heterossexual. O gay possui uma série de diferenciais que o colocam em situação privilegiada: segundo a revista, ele é mais sensível, consome mais cultura, cuida mais de si e, por não constituir família, se torna um consumidor mais atraente de produtos em geral, com um maior orçamento para si e seus gastos exclusivamente pessoais. A constituição do gay “socialmente aceitável” na Sui Generis passa não somente pela cristalização de uma identidade gay específica, que busca ser homogênea e coerente, mas também pela constituição de um consumidor específico. Para a Sui Generis, um dos principais referenciais do estilo de vida gay contemporâneo é o consumo de perfumes, filmes, roupas, viagens, etc. Além disso, um dos motivos pelos quais o gay deve ser aceito enquanto cidadão legítimo é exatamente a sua capacidade especial de consumir.
Uma dessas diretrizes é a superioridade da masculinidade enquanto virilidade, esteja ela alojada em corpos masculinos ou femininos. Isso explica as situações eróticas criadas em torno de encontros fugazes com policiais e soldados, exemplo de masculinidade exacerbada que exercem fascínio sobre os leitores da Homens. Sempre a relação sexual está embutida em códigos de autoridade rígidos (o parceiro ativo domina, penetra e subjuga o parceiro passivo), de acordo com os quais a mesma submissão à autoridade confere o caráter erótico à situação.
A multiplicação de títulos voltados para o homem ou para o público masculino opera um alargamento das possibilidades de imaginários associados ao masculino? Numa primeira leitura, pode parecer que sim, pois as revistas buscam incorporar referências do mundo feminino na masculinidade heterossexual, sugerindo uma diluição das fronteiras entre homem/mulher; e a proliferação de revistas gays e seus crescentes cruzamentos com as publicações heterossexuais podem também sugerir uma recente diluição da oposição hetero/homossexual. Mas como procurei mostrar, com base nas páginas das revistas, o processo não é tão simples. Longe de ocorrer uma diluição das oposições mencionadas, na marioria dos contextos elas são reconstruídas nas situações mais inusitadas, em que aparentemente estavam sendo questionadas, como na “masculinização” dos cosméticos para homens ou na constituição de uma identidade gay de classe média que se opõe frontalmente ao mundo heterossexual.
O que tentei mostrar, no entanto, é que, mais do que recolocadas, repetidas, mantidas, essas oposições são recontextualizadas, o que inevitavelmente provoca um deslocamento nesses imaginários. Confrontados com novos elementeos, esses campos de percepção buscam se reorganizar, mas muitas vezes incorporam referências estranhas a eles mesmos, o que resulta num novo contexto que, mesmo não sendo totalmente novo, também não é totalmente antigo.
Diante de tantos títulos assim enumerados, o leitor pode ser levado a pensar que se torna cada vez mais difícil definir pontos em comum entre propostas tão díspares.
Ou seja, além de seres “homens”, não há necessariamente muito em comum entre o leitor de Palyboy, Placar ou Exame. Aparentemente, num mercado vibrante e concorrencial, no qual revistas nascem e se multiplicam constantemente em busca de seu nicho específico, cada vez mais os estilos de vida diferenciados de cada leitor são uma força desagregadora da noção de “masculino” como unificadora dos homens.
A questão que me orienta neste trabalho, portanto, é exatamente esta: tendo em vista esse contexto de um mercado de revistas masculinas pluralizado e diversificado, a idéia de masculinidade como um atributo que une todos esses leitores ainda faz sentido? Será que, ao analisar as diversas revistas voltadas a esse público, perceberemos que não há nada nelas que recoloque o masculino como um fator de unificação? Ou, pelo contrário, apesar da grande diversidade, poderemos falar sim em um substrato comum de masculinidade, que é de certa forma recorrente em todas as propostas editoriais?
Para realizar este estudo, não fiz um levantamento exaustivo de todo o mercado de revistas masculinas. Concentrei-me em três delas, que apresentam propostas editoriais consideradas discrepantes (pelos próprios sujeitos que as produzem) daquilo que é considerado hegemônico pelo mercado.
A Vip Exame, como buscarei demonstrar, apesar de ser uma tentativa de alargamento das possibilidades do “masculino” na representação, recoloca uma oposição fundamental entre masculino/feminino e entre homossexual/heterossexual. Da mesma forma o faz a revista gay Sui Generis, na qual, além disso, vemos uma tradução para o contexto brasileiro de pressupostos de uma identidade gay norte-americana, ou seja, um público gay relativamente uniforme e coeso em torno de alguns atributos fundamentais, em oposição aos heterossexuais. A revista Homens se destaca desse conjunto por ser a única que não trabalha de forma clara com nenhuma oposição fixa entre homossexual/heterossexual. Nessa revista, os atos sexuais e os sujeitos neles envolvidos transitam de forma muito mais fluida entre essas categorias. O que não significa que ela seja de alguma maneira “libertária” ou mais arrojado do que as outras.
Como procurarei aclarar, se as revistas VIP e Sui Generis trabalham com recortes de classe, de gênero e de idade bastante monolíticos, valorizando somente o homem jovem, de classe média, branco, de corpo saudável e recolocando divisões entre masculino/feminino e hetero/homossexual, a revista Homens, por sua vez, reonstrói uma ordem de gênero eminentemente hierárquica, em que o masculino domina o feminino, o ativo domina o passivo, como princípios recorrentes.
O fenômeno da fragmentação do mercado editorial em nichos diferenciados de leitores não leva necessariamente à desconstrução de algumas distinções extremamente arraigadas no nosso pensamento.
O anunciante que deseja atingir aquele leitor em potencial irá anunciar na revista feita sob medida para receber seu anúncio. As redações trabalha, portanto, em larga medida, com potencialidades, quase nunca tendo clareza de quem lê a revista de fato ou se ela é consumida a partir dos objetivos traçados pelos jornalistas.
Segundo Mira, a partir dos anos 70, a Abril busca uma mudança nas suas práticas de produção, monitorando cada vez mais o leitor. Assim, as suas revistas buscarão, progressivamente consolidar uma imagem específica, que fale a um certo público e não outro. Surge a percepção no interior do mercado publicitário, de que essa especialização é necessária e mais rentável em termos da eficiência da propagando.
Mencionei a Playboy por ser ela constantemente citada pelos editores da VIP como seu contraponto principal dentro do mercado. Ao buscarem fazer uma revista masculina diferente, tinham a Playboy como referência principal desse tipo de publicação, do que seria a proposta tradicional de uma revista masculina. Ensaios de nudez, um machismo mais exacerbado, uma proximidade maior com a pornografia era características das quais a VIP queria se afastar por serem mais próprias da Playboy.
Segundo Mira (1997), a Playboy se firmou a partir de 1975, quando é lançada no país pela Editora Abril, como o novo padrão para as revistas masculinas. Nessa época, ainda era chamada de Homen, devido à censura à marca Playboy.
Pornografia entendida como o discurso por excelência veiculador do obsceno: daquilo que se mostra e deveria ser escondido. A exibição do indesejável: o sexo fora do lugar. Espaço do proibido, do não dizível, do censurado: daquilo que não deve ser, mas é. A pornografia grita e cala, colocando lado a lado o escândalo e o silêncio. É nesse jogo de esconde-esconde que encontramos o seu sentido, mas é também por causa dele que se torna difícil defini-la.
Todas abordam as imagens eróticas como consumíveis, de certa forma isentas de emoção, bastante padronizadas em sua apresentação do sexo, seja em imagens masculinas ou femininas.
Vip
Apesar de o sexo ainda ser o elemento mais importante do conteúdo das reportagens e mulheres serem mostradas em profusão, elas nunca aparecem totalmente nuas.
A redação é composta de dez membros (quatro homens e seis mulheres), o que por si só já é interessante por trata-se de uma revista masculina cujos produtores em sua maioria são mulheres. Mesmo assim, predomina uma estrutura hierárquica em que os homens retêm cargos superiores.
Já uma revista gay apresenta um questionamento fundamental da masculinidade: o desejo do homem não precisa ser necessariamente por mulheres; ao contrário, pode se apresentar múltiplo e indefinido.
G Magazine: desde que dois famosos jogadores de futebol do time paulista Corinthians (dinei e vampeta) decidiram se despir completamente para a revista, algo antes impensável para celebridades, a mídia vem dando destaque e incorporando a existência desse periódico com maior facilidade, anternado o contexto de invisibilidade e boicote que essas publicações sofriam pelo mercado mais amplo.
Uma questão fundamental na comparação entre as duas revistas são as suas diferentes perspectivas do que significa ser gay com relação ao preconceito, à necessidade de “assumir-se gay”, ou “sair do armário”, assim como em relação à dinâmica do desejo homoerótico. Enquanto a Sui Generis é muito mais militante no tocante à auto-estima, assumindo uma postura bem próxima aos movimentos gays norte-americanos de busca de uma identidade unívoca e coesa, a Homens trata do desejo de forma muito mais fluida.
Cerca de 40% das matérias de cada edição são fotos e os trabalhos em que predomina o texto não passam de 20%. É uma revista, portanto, muito mais vista do que lida.
A publicidade aqui atua com todo seu poderia econômico, ainda que com fins comerciais, com base na luta contra o preconceito. Pos mais questionáveis que possam ser as boas intenções desse anunciante, elas são muito mais explícitas do que em qualquer propaganda existente em nosso país. Não nos esqueçamos também de que qualquer revista, seja nacional ou estrangeira, gay ou heterossexual, necessita de um bom contingente de público leitor para atrair anunciantes. A questão econômica é implacável: uma publicação que não mobiliza um público potencialmente consumidor não obtém anunciantes.
SG Press
Com exceção de uma única mulher, todos os jornalistas eram homens gays.
Na publicação gay, o tema do preconceito é fundante. Mesmo não se tratando de um veículo militante ligado a um grupo político, a revista assume uma espécie de “militância de mercado”, trabalhando positivamente a auto-estima do leitor.
A fim de dar conta de como as revistas analisadas produzem suas representações sobre a masculinidade, busquei conjugar a análise do conteúdo com a observação da dinâmica de trabalho nas duas redações. A combinação de ambas as estratégias de pesquisa permite melhor compreender como são produzidas as mensagens impressas, como os repórteres interagem e como as relações intersubjetivas no contexto da produção interferem na mensagem final.
Esta questão é importante, pois, como mostrarei adiante, as diretrizes que norteiam o trabalho dos repórteres são objetos de embates, conflitos e discussões constantes dentro da redação. Esses conflitos não são livres, ou seja, os agentes não têm todos o mesmo poder de decisão e de interferência sobre o que será publicado. A imagem de uma equipe coesa e unificada em torno de uma proposta editorial está longe daquilo que pude observar nas redações.
A questão do leitor se associa a um outra, quando penso no tipo de trabalho específico realizado na redação, o trabalho jornalístico. Durante as minhas observações, quando estava interessado em perceber relações entre os repórteres e suas representações de gênero, na verdade o que eles buscavam o tempo todo era fabricar uma boa matéria, dentro do padrões do que seria considerado “bom jornalismo”, seguindo as regras específicas daquele campo. Para chegar aonde eu queria, que eram as percepções de gênero que orientam os repórteres, não podia basear-me diretamente em seus textos, pois não havia um discurso elaborado sobre a masculinidade, era produto de um embate de uma multiplicidade de discursos, dissonantes, provenientes dos mais variados autores, que colidiam e interagiam na chamada prática jornalística. Ao tentarem fazer uma boa reportagem, esses agentes, imbuídos de suas representações plurais de gênero e recorrendo às mais diversas fontes para apoiar suas afirmativas, acabavam por constituir materiais culturais, as reportagens, reveladoras de uma coerência própria, não revelando o processo de produção das mensagens e os conflitos nele envolvidos.
Claro que há textos que explicitamente apresentam uma certa ideologia de homem ou do que deva ser a masculinidade, ou que expressam posições específicas. Mas não se deve negligenciar que a maioria dos materiais ali presentes foi feita por vários atores, que nem sempre concordam sobre o que seja ou deva ser o homem. Eles tentavam apenas seguir as normas do “bom jornalismo”.
Uma redação não representa um grupo uniforme de opiniões e nem todos estão de acordo quanto ao que deve ser publicado.
Outro debate recorrente na redação, que demonstra a preocupação constante com a “construção do leitor”, era sobre como deveria se portar um homem, qual masculinidade deveria ser debatida e promovida nas páginas da revista.(...) Esse exemplo mostra como cada profissional, ao ter uma visão ligeiramente destoante do que é o homem (e do que ele deve buscar ser), desloca também a implementação das diretrizes editoriais, que não definem quais roupas o homem deve usar ou quanto dinheiro deve gastar.
A influência do material estrangeiro, como fui descobrindo, é constante, desde a concepção do periódico até o trabalho diário de elaborar reportagens, ensaios fotográficos e temas para discussão naquele número.
A discussão sobre a “garota da capa” ocorre meses antes de a matéria ser publicada. Isso porque ela é o primeiro chamativo da revista, aquele que captura o leitor nas bancas. Ter na capa a foto certa faz toda a diferença na hora de calcular as vendas.
O interessante, do ponto de vista etnográfico é, portanto, que a dinâmica de trabalho desse periódico se pauta também sobre um leitor imaginado, sobre sua representação. As discussões na reunião de pauta da VIP, por exemplo, eram bastante fixadas ao tema sexo; era de suma importância para os repórteres e editores definir a “atitude” da revista frente a esse assunto; quanto espaço lhe deveria ser destinado, qual a linguagem a ser utilizada, até onde se deve ir com a liberalidade no seu tratamento, qual deve ser o “tom” utilizado ao abordar assuntos a eles relacionados. Todo o trabalho conjunto na reunião de pauta estava voltado para afinar o grupo em torno de uma proposta mais ou menos comum de atitude frente à revista, dadas as características específicas do leitor visado.
Uma função do jornalista ao elaborar representações sobre o leitor, inspirando-se em publicações estrangeiras: a de tradutor cultural. De alguma forma, esses profissionais operam uma investigação dos imaginários brasileiros da masculinidade ao pensar quem é o seu público-alvo, do que ele gosta e quais são seus anseios.
O “leitor da VIP”, que é real e está empiricamente dado, é também criado no processo mesmo de produção da revista, que tenta supostamente agradá-lo. Nesse processo de busca do consumidos, de seus gostos e características, os repórteres criam representações que orientam, em boa medida, o trabalho de reportagem. (p. 78)
These views are discerned through market research and letters to the editor, but the reader is also a product of the imagination of staff members who, as we have seen earlier, sometimes pay little attention to market research or reader feedback and intentionally let their own intuitions and ideas about ideal coverage stand for those of their readers. (Lutz e Collins, 1993: 217).
55 % dos leitores são homens.
Um homem que se preocupa com aparência e moda, cada vez mais autoconsciente de sua masculinidae enquanto atributo a ser construído e enquanto objeto de desejo sexual.
Há também o recurso da “garota da capa”, a inevitável figura feminina sensual chamando a atenção do público masculino, e o uso constante de imagens de mulheres seminuas, com a quase ausência de imagens de homens. Existe um apelo à heterossexualidade “natural” dos leitores, ao sensual e ao sexual, mesmo que de forma mais “refinada” ou “inteligente”, como os editores gostam de dizer.
Coloca o desejo heterossexual como pressuposto básico de qualquer masculinidade. Todas as matérias se direcionam ao homem que deseja mulheres e quer agradá-las ao máximo.
A editora faz recorrentemente matérias de comportamento e se vale de seus anos de experiência como especialista nessa área para validar a sua posição no mercado editorial, onde é conhecida como “jornalista de comportamento”, embora não tenha nenhuma formação específica ou formação acadêmica em Psicologia.
Os imaginários sobre o masculino e o feminino circulantes passam assim pelo crivo desse processo jornalístico e são tornados “notícia” ou “jornalismo”. Ou seja: ao passar por um método de trabalho desenvolvido e aprendido em faculdades, tais imaginários que circulam em toda a sociedade, as vivências dos repórteres, tornam-se matérias jornalísticas na mídia à qual esses personagens têm acesso. Dessa forma, tornam-se “informação”, pautada por especialistas (o que confirma a sua veracidade e validade científica) e pronta para ser consumida.
Nossa infinitamente rica pletora de identidades sexuais, nossos homens, mulheres, bichas, michês, viados, travestis, sapatões, monas, ades, monocos, saboeiras e assim por diante não são simples traduções dos homossexuais, heterossexuais e bissexuais que povoam as terras anglo-saxônicas. São personagens de um cenário de significações que têm sua história e lógica próprias.
Perceber que a multiplicidade existente na categoria “homem” pede uma abordagem que valorize a práticas e as negociações constantes de identidade que ocorrem diariamente nas relações sociais.
“Comer cu”, “ser chupado” são atividades sempre possíveis a esses sujeitos, duplamente personagens: nas fotos, representam dois rapazes que trabalham no borracheiro; na entrevista, encenam dois modelos viris ou “machos” que, por acaso, fizeram fotos para gays. Nunca temos acesso à prática sexual real desses sujeitos, o que nesse caso não interessa tanto quanto o imaginário que os circunda.
Mas essa heterossexualidade parece invocada muito mais vezes do que efetivamente praticada. Como os michês entrevistados “em profundidade” o revelam, gabar-se de heterossexualide soma pontos perante os clientes, que, em grande parte, procuram rapazes que não sejam homossexuais.
Um “hétero” estaria no topo da escala de masculinidade em relação aos outros, enquanto o travesti e o transexual estariam na proporção menos masculinas. A tendência é os mais femininos desejarem os mais masculinos, e vice-versa, mas não há um padrão fixo ou excludente.
A pluralidade de práticas homoeróticas no Brasil é enorme, não se esgotando nas concepções elaboradas no gueto ou no interior de movimentos políticos. A vivência “homossexual” ou “homoerótica” brasileira transcende o gueto e confunde-se com o modelo dominante heterossexual.
As novas teorias sobre o gênero, muitas delas realizadas sob o rótulo do “pós-estruturalismo”, fazem a crítica de categorias como “homem” e “mulher” enquanto identidades solidamente articuladas e imutáveis, ou mesmo necessárias ou inevitáveis.
Assim, aqueles segmentos que não se sentiam representados pelas reivindicações dos homossexuais libertários começaram a criticar as táticas desse movimento, que buscava uma estratégia de assimilação (gays e lésbicas não são diferentes de heterossexuais na essência) e constituía uma base identitária sólida, coerente para o sujeito gay, a partir do chamado “orgulho gay”. Esse tipo de essencialismo identitário começou a ser criticado por se basear em valores de classe média brancos e não ser representativo de todos os sujeitos não heterossexuais.
Portanto, da mesma forma que a VIP, a Sui Generis investe na produção de uma lógica identitária, operando uma diferenciação entre homem e mulher (pois o gay nunca deve deixar de ser homem, recaindo nos estereótipos populares e homofóbicos da “bicha efeminada”, entre homo e heterossexual. O gay possui uma série de diferenciais que o colocam em situação privilegiada: segundo a revista, ele é mais sensível, consome mais cultura, cuida mais de si e, por não constituir família, se torna um consumidor mais atraente de produtos em geral, com um maior orçamento para si e seus gastos exclusivamente pessoais. A constituição do gay “socialmente aceitável” na Sui Generis passa não somente pela cristalização de uma identidade gay específica, que busca ser homogênea e coerente, mas também pela constituição de um consumidor específico. Para a Sui Generis, um dos principais referenciais do estilo de vida gay contemporâneo é o consumo de perfumes, filmes, roupas, viagens, etc. Além disso, um dos motivos pelos quais o gay deve ser aceito enquanto cidadão legítimo é exatamente a sua capacidade especial de consumir.
Uma dessas diretrizes é a superioridade da masculinidade enquanto virilidade, esteja ela alojada em corpos masculinos ou femininos. Isso explica as situações eróticas criadas em torno de encontros fugazes com policiais e soldados, exemplo de masculinidade exacerbada que exercem fascínio sobre os leitores da Homens. Sempre a relação sexual está embutida em códigos de autoridade rígidos (o parceiro ativo domina, penetra e subjuga o parceiro passivo), de acordo com os quais a mesma submissão à autoridade confere o caráter erótico à situação.
A multiplicação de títulos voltados para o homem ou para o público masculino opera um alargamento das possibilidades de imaginários associados ao masculino? Numa primeira leitura, pode parecer que sim, pois as revistas buscam incorporar referências do mundo feminino na masculinidade heterossexual, sugerindo uma diluição das fronteiras entre homem/mulher; e a proliferação de revistas gays e seus crescentes cruzamentos com as publicações heterossexuais podem também sugerir uma recente diluição da oposição hetero/homossexual. Mas como procurei mostrar, com base nas páginas das revistas, o processo não é tão simples. Longe de ocorrer uma diluição das oposições mencionadas, na marioria dos contextos elas são reconstruídas nas situações mais inusitadas, em que aparentemente estavam sendo questionadas, como na “masculinização” dos cosméticos para homens ou na constituição de uma identidade gay de classe média que se opõe frontalmente ao mundo heterossexual.
O que tentei mostrar, no entanto, é que, mais do que recolocadas, repetidas, mantidas, essas oposições são recontextualizadas, o que inevitavelmente provoca um deslocamento nesses imaginários. Confrontados com novos elementeos, esses campos de percepção buscam se reorganizar, mas muitas vezes incorporam referências estranhas a eles mesmos, o que resulta num novo contexto que, mesmo não sendo totalmente novo, também não é totalmente antigo.
Revista Júnior
Pode-se dizer que as instituições midiáticas formam uma espécie de sistema carregado de valores e padrões de conduta que são transmitidos constantemente aos indivíduos de maneira que estes, embora sejam atingidos direta ou indiretamente, nem sempre têm consciência dessa influência em suas formas de autocompreensão, na maneira como vivem e se relacionam com outras pessoas.
Assim como a noção de “homem”, que é sempre aplicada em sua plenitude àqueles que se relacionam e se interessam sexualmente por mulheres, a de “masculinidade” é comumente tida como singular, única e heterossexual, restringindo muito a sua utilização.
Dada a complexidade das relações sociais e da forma como as categorias gênero, sexualidade, raça, geração e classe social se intersectam, o estudo busca – dentro do possível - associá-los na análise.
Afinal, as influências culturais marcam relações de autocontrole internas ao sujeito - em esforço para se adequar ao modelo tido como correto e natural. Este modelo, ou modelos, não são neutros nem passíveis de livre escolha, pois a coletividade cria – assim como a mídia dissemina - representações valorativas, articulando uma rede de hierarquias: homem x mulher, normal x desviante, hegemônico x subalterno, dominante x dominado.
Mesmo que o padrão dos modelos da maioria das revistas –tanto masculinas quanto femininas- seja dificilmente alcançado por grande parte das pessoas (principalmente com as intervenções do Photoshop, que corrigem defeitos e deixam os modelos próximos da “perfeição”), há uma ilusão de que ele é saudável, obtido através de uma conduta positiva de exercícios físicos e alimentação natural, ou seja, por meio de uma vida regrada e baseada na autoperitagem. Pessoas acima do peso estariam não apenas fora do desejável no âmbito estético, mas também muito mais propensas a doenças- ainda que remédios para emagrecer, doenças como bulimia ou anorexia e anabolizantes sejam alternativas nada benéficas, e constantemente utilizadas por quem deseja alcançar o corpo tido como ideal.
O culto à disciplina alimentar e de exercícios elude a distância socioeconômica de forma a parecer que o padrão corporal em voga é alcançável por qualquer um e sua não-obtenção a prova do “fracasso” do indivíduo, uma falha “moral” perceptível no estereótipo de preguiça e falta de autocontrole que nossa sociedade atribui a obesos em geral.
A revista Júnior, dirigida a um público gay jovem exposto a estas demandas corporais, reforça estas idéias por meio de capas, matérias e – sobretudo – anúncios publicitários em que a adesão a um corpo ideal acenasse com uma possibilidade promissora: a de alcançar aceitação social plena.
A revista Júnior, assim como o circuito de consumo de seus leitores, revela uma norma tão paradoxal quanto difícil de ser seguida à risca: a de que se deve ser gay, mas dentro de uma conformidade ou flexibilidade de gênero, de forma que a masculinidade hegemônica possa ser acionada quando seja necessário “passar por hetero”. No fim das contas, um valor dos mais altamente erotizados em todo o meio gay brasileiro, nosso equivalente do norte-americano straight-acting.
Os “culpados” são os gays veteranos, é a mídia, é o marketing, é a indústria, o mercado, mas a revista Júnior se isenta desta responsabilidade já que abre suas páginas para que esse tipo de discussão seja feita- ainda que as abra também para o mercado, o marketing e a indústria, fortalecendo a noção do gay sofisticado e consumista. Essa duplicidade é vista como uma qualidade, já que logo no editorial de estréia se explicita que a Júnior seria “assumida sem ser militante, sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informações pra fazer pensar e entreter”. O “pensar” fica por parte desses textos mais sérios, de estudiosos renomados e com questões espinhosas, enquanto o “entreter” se estende pelo resto da revista, com suas fotos sensuais, dicas de moda, festas famosas, viagens para o exterior e sugestões de artigos “indispensáveis”.
Como grupo social, em um passado não muito distante, ou seja, durante as décadas de 1960 e 1970, os gays foram avaliados por muitos como possíveis contestadores da ordem hegemônica, criando formas totalmente novas de relações e construção de subjetividade. Tal esperança não se concretizou completamente, a partir do momento em que forças do controle social moveram o grupo do gueto questionador para um âmbito mercadológico, baseado em consumo e voltado à adequação aos valores impostos pela sociedade (MISKOLCI, 2006 p.691).
Matérias sobre almas gêmeas, loucuras de amor e falas que explicitam a busca por “alguém para a vida toda” dividem espaço com questionamentos sobre a existência de relacionamentos duradouros no “mundo gay”.
Essa visão foi mantida durante um longo tempo e, embora obtivesse reações contrárias em protesto, além de uma constante busca dos homossexuais a maior reconhecimento na sociedade, só começou a ser fortemente enfrentada a partir de 1969, quando eclodiu a Revolta de Stonewall. Respondendo à costumeira repressão policial sobre o bar nova iorquino Stonewall Inn, cujo público era formado por homossexuais femininos, masculinos, travestis e drag queens, os freqüentadores se revoltaram e enfrentaram violentamente a força policial, em um confronto que durou cinco dias e, conforme foi noticiado, angariou mais e mais ativistas contra a violência e o preconceito.
Em um período ainda marcado pela contracultura, os grupos homossexuais representavam a possibilidade de uma inovação sem precedentes sendo que muitos deles pregavam mudanças do cerne da sociedade tradicional como
(...) a abolição dos papéis sexuais, a transformação da instituição familiar, a desconstrução das categorias monolíticas da homo e da heterossexualidade, o desenvolvimento de um novo vocabulário do erótico e, sobretudo, a compreensão da sexualidade como prazerosa e relacional ao invés de reprodutiva ou definidora de um status moral aceitável ou reprovável socialmente. (MISKOLCI, 2007, p.107)
Na década de 1980, entretanto, o movimento de busca por mudanças sociais foi preterido devido a um assunto mais urgente: o surgimento da AIDS. Atingindo fortemente os homossexuais, principalmente homens, a doença causou a morte de um número incalculável de pessoas. Durante esse período, a informação era escassa e a pecha de doença exclusivamente de um grupo de risco- encabeçado pelos gays, mas que contava também com a presença de usuários de drogas, africanos e haitianos (pois se acreditava que a doença tinha surgido na África ou no Haiti), hemofílicos e prostitutas- foi assimilada de modo quase irrevogável sob o título de “praga gay”. A AIDS criou um verdadeiro pânico sexual25e como tal acabou gerando como resposta um retorno aos valores tradicionais, inclusive por parte dos gays.
O movimento político nesse momento se reconfigurou de maneira a priorizar a obtenção de direitos civis para os homossexuais, voltando seus esforços à união com o Estado e rejeitando práticas consideradas “marginais”. Assim, buscando uma integração maior do grupo na sociedade - objetivo que continua sendo perseguido nos dias atuais- adotou como bandeira principal, em nossos dias, a busca pelo direito ao casamento civil. Essa luta de gays e lésbicas para alcançar os mesmos direitos concedidos aos heterossexuais é válida no que diz respeito à obtenção de igualdade, visibilidade e aceitação. No entanto, analisando o potencial modificador já creditado ao grupo, essas lutas que se dão em um âmbito conservador acabam sendo normalizantes.
Enquanto os homens são mais livres de amarras sociais no que diz respeito ao seu prazer, as mulheres ainda cultivam preocupações com a sua “honra” e “reputação”: se fala de sexo mais abertamente e existiu de fato uma maior liberação feminina, que possibilitou uma vida sexual muito mais ativa, entretanto até mesmo em revistas vistas como ousadas (Nova Cosmopolitan, por exemplo, que traz guias de sexo lacrado, com imagens gráficas) retoma questões extremamente conservadoras como “fazer ou não sexo no primeiro encontro”, explicitando o medo que a mulher tem de ser julgada por sua sexualidade. Se os homens heterossexuais muitas vezes fazem uma diferenciação entre a mulher que merece ser valorizada e a que não (mulher pra casar X mulher pra sexo), os homossexuais não parecem considerar um parceiro menos digno exclusivamente por ter aceitado fazer sexo sem compromisso, e assim estariam mais abertos a esse tipo de relação rápida e fugaz
Este chamado à “tradição” não parece mais ser motivo de dúvidas ou questionamentos como nos relatos de quem viveu o período da contracultura e os obstáculos à realização do “conto de fadas” parecem estar mais na legislação do que nas particularidades dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. O ideal amoroso monogâmico, quiçá legalizado e até mesmo reprodutivo se converte ele mesmo em algo a ser “consumido”, mas ainda como um ideal enquanto predomina o suposto “hedonismo” do presente.
Assim como a noção de “homem”, que é sempre aplicada em sua plenitude àqueles que se relacionam e se interessam sexualmente por mulheres, a de “masculinidade” é comumente tida como singular, única e heterossexual, restringindo muito a sua utilização.
Dada a complexidade das relações sociais e da forma como as categorias gênero, sexualidade, raça, geração e classe social se intersectam, o estudo busca – dentro do possível - associá-los na análise.
Afinal, as influências culturais marcam relações de autocontrole internas ao sujeito - em esforço para se adequar ao modelo tido como correto e natural. Este modelo, ou modelos, não são neutros nem passíveis de livre escolha, pois a coletividade cria – assim como a mídia dissemina - representações valorativas, articulando uma rede de hierarquias: homem x mulher, normal x desviante, hegemônico x subalterno, dominante x dominado.
Mesmo que o padrão dos modelos da maioria das revistas –tanto masculinas quanto femininas- seja dificilmente alcançado por grande parte das pessoas (principalmente com as intervenções do Photoshop, que corrigem defeitos e deixam os modelos próximos da “perfeição”), há uma ilusão de que ele é saudável, obtido através de uma conduta positiva de exercícios físicos e alimentação natural, ou seja, por meio de uma vida regrada e baseada na autoperitagem. Pessoas acima do peso estariam não apenas fora do desejável no âmbito estético, mas também muito mais propensas a doenças- ainda que remédios para emagrecer, doenças como bulimia ou anorexia e anabolizantes sejam alternativas nada benéficas, e constantemente utilizadas por quem deseja alcançar o corpo tido como ideal.
O culto à disciplina alimentar e de exercícios elude a distância socioeconômica de forma a parecer que o padrão corporal em voga é alcançável por qualquer um e sua não-obtenção a prova do “fracasso” do indivíduo, uma falha “moral” perceptível no estereótipo de preguiça e falta de autocontrole que nossa sociedade atribui a obesos em geral.
A revista Júnior, dirigida a um público gay jovem exposto a estas demandas corporais, reforça estas idéias por meio de capas, matérias e – sobretudo – anúncios publicitários em que a adesão a um corpo ideal acenasse com uma possibilidade promissora: a de alcançar aceitação social plena.
A revista Júnior, assim como o circuito de consumo de seus leitores, revela uma norma tão paradoxal quanto difícil de ser seguida à risca: a de que se deve ser gay, mas dentro de uma conformidade ou flexibilidade de gênero, de forma que a masculinidade hegemônica possa ser acionada quando seja necessário “passar por hetero”. No fim das contas, um valor dos mais altamente erotizados em todo o meio gay brasileiro, nosso equivalente do norte-americano straight-acting.
Os “culpados” são os gays veteranos, é a mídia, é o marketing, é a indústria, o mercado, mas a revista Júnior se isenta desta responsabilidade já que abre suas páginas para que esse tipo de discussão seja feita- ainda que as abra também para o mercado, o marketing e a indústria, fortalecendo a noção do gay sofisticado e consumista. Essa duplicidade é vista como uma qualidade, já que logo no editorial de estréia se explicita que a Júnior seria “assumida sem ser militante, sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informações pra fazer pensar e entreter”. O “pensar” fica por parte desses textos mais sérios, de estudiosos renomados e com questões espinhosas, enquanto o “entreter” se estende pelo resto da revista, com suas fotos sensuais, dicas de moda, festas famosas, viagens para o exterior e sugestões de artigos “indispensáveis”.
Como grupo social, em um passado não muito distante, ou seja, durante as décadas de 1960 e 1970, os gays foram avaliados por muitos como possíveis contestadores da ordem hegemônica, criando formas totalmente novas de relações e construção de subjetividade. Tal esperança não se concretizou completamente, a partir do momento em que forças do controle social moveram o grupo do gueto questionador para um âmbito mercadológico, baseado em consumo e voltado à adequação aos valores impostos pela sociedade (MISKOLCI, 2006 p.691).
Matérias sobre almas gêmeas, loucuras de amor e falas que explicitam a busca por “alguém para a vida toda” dividem espaço com questionamentos sobre a existência de relacionamentos duradouros no “mundo gay”.
Essa visão foi mantida durante um longo tempo e, embora obtivesse reações contrárias em protesto, além de uma constante busca dos homossexuais a maior reconhecimento na sociedade, só começou a ser fortemente enfrentada a partir de 1969, quando eclodiu a Revolta de Stonewall. Respondendo à costumeira repressão policial sobre o bar nova iorquino Stonewall Inn, cujo público era formado por homossexuais femininos, masculinos, travestis e drag queens, os freqüentadores se revoltaram e enfrentaram violentamente a força policial, em um confronto que durou cinco dias e, conforme foi noticiado, angariou mais e mais ativistas contra a violência e o preconceito.
Em um período ainda marcado pela contracultura, os grupos homossexuais representavam a possibilidade de uma inovação sem precedentes sendo que muitos deles pregavam mudanças do cerne da sociedade tradicional como
(...) a abolição dos papéis sexuais, a transformação da instituição familiar, a desconstrução das categorias monolíticas da homo e da heterossexualidade, o desenvolvimento de um novo vocabulário do erótico e, sobretudo, a compreensão da sexualidade como prazerosa e relacional ao invés de reprodutiva ou definidora de um status moral aceitável ou reprovável socialmente. (MISKOLCI, 2007, p.107)
Na década de 1980, entretanto, o movimento de busca por mudanças sociais foi preterido devido a um assunto mais urgente: o surgimento da AIDS. Atingindo fortemente os homossexuais, principalmente homens, a doença causou a morte de um número incalculável de pessoas. Durante esse período, a informação era escassa e a pecha de doença exclusivamente de um grupo de risco- encabeçado pelos gays, mas que contava também com a presença de usuários de drogas, africanos e haitianos (pois se acreditava que a doença tinha surgido na África ou no Haiti), hemofílicos e prostitutas- foi assimilada de modo quase irrevogável sob o título de “praga gay”. A AIDS criou um verdadeiro pânico sexual25e como tal acabou gerando como resposta um retorno aos valores tradicionais, inclusive por parte dos gays.
O movimento político nesse momento se reconfigurou de maneira a priorizar a obtenção de direitos civis para os homossexuais, voltando seus esforços à união com o Estado e rejeitando práticas consideradas “marginais”. Assim, buscando uma integração maior do grupo na sociedade - objetivo que continua sendo perseguido nos dias atuais- adotou como bandeira principal, em nossos dias, a busca pelo direito ao casamento civil. Essa luta de gays e lésbicas para alcançar os mesmos direitos concedidos aos heterossexuais é válida no que diz respeito à obtenção de igualdade, visibilidade e aceitação. No entanto, analisando o potencial modificador já creditado ao grupo, essas lutas que se dão em um âmbito conservador acabam sendo normalizantes.
Enquanto os homens são mais livres de amarras sociais no que diz respeito ao seu prazer, as mulheres ainda cultivam preocupações com a sua “honra” e “reputação”: se fala de sexo mais abertamente e existiu de fato uma maior liberação feminina, que possibilitou uma vida sexual muito mais ativa, entretanto até mesmo em revistas vistas como ousadas (Nova Cosmopolitan, por exemplo, que traz guias de sexo lacrado, com imagens gráficas) retoma questões extremamente conservadoras como “fazer ou não sexo no primeiro encontro”, explicitando o medo que a mulher tem de ser julgada por sua sexualidade. Se os homens heterossexuais muitas vezes fazem uma diferenciação entre a mulher que merece ser valorizada e a que não (mulher pra casar X mulher pra sexo), os homossexuais não parecem considerar um parceiro menos digno exclusivamente por ter aceitado fazer sexo sem compromisso, e assim estariam mais abertos a esse tipo de relação rápida e fugaz
Este chamado à “tradição” não parece mais ser motivo de dúvidas ou questionamentos como nos relatos de quem viveu o período da contracultura e os obstáculos à realização do “conto de fadas” parecem estar mais na legislação do que nas particularidades dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. O ideal amoroso monogâmico, quiçá legalizado e até mesmo reprodutivo se converte ele mesmo em algo a ser “consumido”, mas ainda como um ideal enquanto predomina o suposto “hedonismo” do presente.
As Adolescentes Negras no Discurso da Revista Atrevida
É como uma categoria culturalmente aprendida que a beleza e também a beleza negra
foram analisadas na revista Atrevida. Objeto de desejo de mulheres brasileiras de todas as idades e classe social, a beleza pode ser alcançada seguindo-se as instruções das publicações do gênero, porém sem perder de vista que todas as “orientações” que as revistas oferecem às mulheres visam a um alvo maior: não é apenas ser bela e, sim, ser bela aos olhos dos representantes do sexo oposto.
A leitora branca é de novo chamada ao texto, como leitora-alvo da publicação, como se dissesse a ela se acalmar, já que, na disputa estética, ela não perderá o seu lugar para a adolescente negra. O discurso produzido chama a atenção para o fato de que ser negra é bom, mas elas têm desvantagens, vejamos: “Uma baita sorte! (elas terem mais colágeno). Em compensação, elas correm o risco de ficar com cicatrizes”. Ou seja, elas são menos flácidas, mas tem outras desvantagens. A autora ainda alerta que a negra deve pensar antes de usufruir as opções de ornamentação corporal, como uso de piercing e furos na orelha, mas não apresenta alternativas viáveis ao seu tipo de pele.
Perpassando todo o texto, a negritude é tratada de forma homogênea, e as particularidades de ser negra são ignoradas. Em um país fortemente miscigenado, como o Brasil, é difícil imaginar que todas as negras tenham o mesmo tom de pele, textura de cabelo e, o mais importante, a mesma concepção de beleza. Será que todas querem cabelos com movimento? Temem as cicatrizes? Preocupam-se em se depilar?
Ao privilegiar um público ideal, marcado por um recorte étnico-racial, isto é, a
adolescente branca, a revista faz uma escolha e usa de várias estratégias discursivas para realizála.
Basta prestarmos atenção às seções e aos textos que antecedem e sucedem a matéria aqui analisada, na perspectiva da interdiscursividade e da intertextualidade, para percebermos que o imaginário racial que povoa os editores, as reportagens e as matérias de Atrevida não inclui a dimensão pluriétnica e multirracial da sociedade brasileira na qual essa mídia impressa é produzida.
Os dados revelam que Atrevida contribui para a manutenção do discurso hegemônico sobre beleza, gênero e raça, delegando a cada grupo social um lugar em uma escala de valores predefinidas pela sociedade brasileira. Como pretende, porém, atingir um
público jovem e diverso, elabora um discurso de falsa mudança. São admitidos o cabelo crespo e o cabelo cacheado como potenciais de beleza, contudo na posição de alternativos. Não se percebe um sentido político da ideia de alternativo como algo que se coloca independente em relação a um padrão dominante, mas, sim, como mais uma possibilidade.
A declaração da estilista também revela como o mito da democracia racial ainda povoa o pensamento do brasileiro. Nessa perspectiva, como resultado de uma miscigenação dos três povos fundadores da nação brasileira – índios, negros e brancos –, somos naturalmente tolerantes racialmente. A afirmativa da estilista não é válida; o avô negro que ela evoca não justifica a sua não disposição em contratar modelos negras e indígenas em número mínimo em seus desfiles.
O mérito, no discurso da negação da desigualdade e da discriminação racial, aparece como um recurso ideológico e retórico construído nas relações de poder que isola o sujeito que vivencia a desigualdade dos condicionantes sociais, históricos, culturais e políticos que a produziram. O mérito não é algo individual e natural. É também uma construção respaldada em critérios que paulatinamente foram impostos em nossa sociedade como padrão de conhecimento, de beleza, de racionalidade. Há muito que se questionar o esvaziamento político que o mérito assume no discurso das cotas, seja no mundo da moda, seja no mundo acadêmico.
As revistas femininas, geralmente, são alicerçadas em processos comunicativos. Elas
pretendem orientar suas leitoras sobre conduta, aparência, moda, celebridades, sem, no entanto, informar sobre esses assuntos. Os textos são imperativos e prescritivos, baseados na experiência de vida de outras pessoas. A opinião pessoal, individual, tem peso muito forte nessas publicações, maior que outras informações, elaboradas por autoridades no assunto. Estas últimas somente são consultadas para respaldar as opiniões da revista.
É muito comum confundir educação com escolarização. A introdução do campo da
cultura como importante elemento para se compreender os processos formativos vividos pela experiência humana poderá nos ajudar a entender que todo processo de aprendizagem é, antes de tudo, cultural, isto é, ele não se limita ao tempo, ao espaço e à forma escolar.
Reconhecemos que o processo escolar exerce influência sobre a aprendizagem nas sociedades em que a época de frequentar a escola é um tempo-forte e é capaz de construir formas de ensino-aprendizagem próprias desse contexto. Discutindo, porém, a aprendizagem como componente da cultura produzida ou modificada pelos sujeitos sociais, conseguimos delinear diversos espaços de educação e cultura para além dos muros da escola, quais sejam: os movimentos sociais, as festas, a Igreja, o trabalho, os sindicatos, os partidos políticos, a família, a interação com os pares, entre outros.
Apenas uma parcela da cultura produzida é ensinada pela escola, geralmente, aquela
parcela eleita como a legítima pelos grupos que têm a hegemonia do processo e da política educacional. Essa eleição se corporifica por meio do currículo na sua forma oficial, em ação e oculta. Ainda assim, considerando educandos como sujeitos, como nos propõe Arroyo (2000), sabemos que, ao chegar à escola, esses sujeitos estão repletos de crenças, valores, hábitos, conceitos e preconceitos, adquiridos em uma formação não escolar. A ação desses sujeitos pode modificar, tensionar e até mesmo implodir as concepções culturais e pedagógicas presentes de forma oficial nas escolas. Há universos culturais, sociais, políticos e discursivos em disputa. Isso se expressa nos rituais, nos currículos, nas práticas pedagógicas, na organização do trabalho da escola.
Com a predominância de pesquisas sobre a escolarização no campo educacional, a
mídia é pouco estudada na perspectiva de educação. Uma perspectiva “escolarizada” de
educação dificilmente captará o lugar da mídia como processo formador e educativo.
Como se pode notar, a mídia tem caráter educativo evidente e, sendo assim, não pode
deixar de ser objeto de estudo do campo da educação. Seu papel, paulatinamente, tem sido assunto de diversas áreas de conhecimento.
O masculino aparece nesse diálogo, porém, de forma pouco problematizada. Geralmente, ele se apresenta como a referência para determinados comportamentos e aspirações do tipo de mulher que essa mídia privilegia. Além disso, o masculino com o qual tais publicações dialogam diz respeito a um determinado recorte dentro da gama de possibilidades que esse universo incorpora.
Carolina dos Santos de Oliveira
AS ADOLESCENTES NEGRAS NO DISCURSO DA REVISTA ATREVIDA
Belo Horizonte- 2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- FACULDADE DE EDUCAÇÃO
foram analisadas na revista Atrevida. Objeto de desejo de mulheres brasileiras de todas as idades e classe social, a beleza pode ser alcançada seguindo-se as instruções das publicações do gênero, porém sem perder de vista que todas as “orientações” que as revistas oferecem às mulheres visam a um alvo maior: não é apenas ser bela e, sim, ser bela aos olhos dos representantes do sexo oposto.
A leitora branca é de novo chamada ao texto, como leitora-alvo da publicação, como se dissesse a ela se acalmar, já que, na disputa estética, ela não perderá o seu lugar para a adolescente negra. O discurso produzido chama a atenção para o fato de que ser negra é bom, mas elas têm desvantagens, vejamos: “Uma baita sorte! (elas terem mais colágeno). Em compensação, elas correm o risco de ficar com cicatrizes”. Ou seja, elas são menos flácidas, mas tem outras desvantagens. A autora ainda alerta que a negra deve pensar antes de usufruir as opções de ornamentação corporal, como uso de piercing e furos na orelha, mas não apresenta alternativas viáveis ao seu tipo de pele.
Perpassando todo o texto, a negritude é tratada de forma homogênea, e as particularidades de ser negra são ignoradas. Em um país fortemente miscigenado, como o Brasil, é difícil imaginar que todas as negras tenham o mesmo tom de pele, textura de cabelo e, o mais importante, a mesma concepção de beleza. Será que todas querem cabelos com movimento? Temem as cicatrizes? Preocupam-se em se depilar?
Ao privilegiar um público ideal, marcado por um recorte étnico-racial, isto é, a
adolescente branca, a revista faz uma escolha e usa de várias estratégias discursivas para realizála.
Basta prestarmos atenção às seções e aos textos que antecedem e sucedem a matéria aqui analisada, na perspectiva da interdiscursividade e da intertextualidade, para percebermos que o imaginário racial que povoa os editores, as reportagens e as matérias de Atrevida não inclui a dimensão pluriétnica e multirracial da sociedade brasileira na qual essa mídia impressa é produzida.
Os dados revelam que Atrevida contribui para a manutenção do discurso hegemônico sobre beleza, gênero e raça, delegando a cada grupo social um lugar em uma escala de valores predefinidas pela sociedade brasileira. Como pretende, porém, atingir um
público jovem e diverso, elabora um discurso de falsa mudança. São admitidos o cabelo crespo e o cabelo cacheado como potenciais de beleza, contudo na posição de alternativos. Não se percebe um sentido político da ideia de alternativo como algo que se coloca independente em relação a um padrão dominante, mas, sim, como mais uma possibilidade.
A declaração da estilista também revela como o mito da democracia racial ainda povoa o pensamento do brasileiro. Nessa perspectiva, como resultado de uma miscigenação dos três povos fundadores da nação brasileira – índios, negros e brancos –, somos naturalmente tolerantes racialmente. A afirmativa da estilista não é válida; o avô negro que ela evoca não justifica a sua não disposição em contratar modelos negras e indígenas em número mínimo em seus desfiles.
O mérito, no discurso da negação da desigualdade e da discriminação racial, aparece como um recurso ideológico e retórico construído nas relações de poder que isola o sujeito que vivencia a desigualdade dos condicionantes sociais, históricos, culturais e políticos que a produziram. O mérito não é algo individual e natural. É também uma construção respaldada em critérios que paulatinamente foram impostos em nossa sociedade como padrão de conhecimento, de beleza, de racionalidade. Há muito que se questionar o esvaziamento político que o mérito assume no discurso das cotas, seja no mundo da moda, seja no mundo acadêmico.
As revistas femininas, geralmente, são alicerçadas em processos comunicativos. Elas
pretendem orientar suas leitoras sobre conduta, aparência, moda, celebridades, sem, no entanto, informar sobre esses assuntos. Os textos são imperativos e prescritivos, baseados na experiência de vida de outras pessoas. A opinião pessoal, individual, tem peso muito forte nessas publicações, maior que outras informações, elaboradas por autoridades no assunto. Estas últimas somente são consultadas para respaldar as opiniões da revista.
É muito comum confundir educação com escolarização. A introdução do campo da
cultura como importante elemento para se compreender os processos formativos vividos pela experiência humana poderá nos ajudar a entender que todo processo de aprendizagem é, antes de tudo, cultural, isto é, ele não se limita ao tempo, ao espaço e à forma escolar.
Reconhecemos que o processo escolar exerce influência sobre a aprendizagem nas sociedades em que a época de frequentar a escola é um tempo-forte e é capaz de construir formas de ensino-aprendizagem próprias desse contexto. Discutindo, porém, a aprendizagem como componente da cultura produzida ou modificada pelos sujeitos sociais, conseguimos delinear diversos espaços de educação e cultura para além dos muros da escola, quais sejam: os movimentos sociais, as festas, a Igreja, o trabalho, os sindicatos, os partidos políticos, a família, a interação com os pares, entre outros.
Apenas uma parcela da cultura produzida é ensinada pela escola, geralmente, aquela
parcela eleita como a legítima pelos grupos que têm a hegemonia do processo e da política educacional. Essa eleição se corporifica por meio do currículo na sua forma oficial, em ação e oculta. Ainda assim, considerando educandos como sujeitos, como nos propõe Arroyo (2000), sabemos que, ao chegar à escola, esses sujeitos estão repletos de crenças, valores, hábitos, conceitos e preconceitos, adquiridos em uma formação não escolar. A ação desses sujeitos pode modificar, tensionar e até mesmo implodir as concepções culturais e pedagógicas presentes de forma oficial nas escolas. Há universos culturais, sociais, políticos e discursivos em disputa. Isso se expressa nos rituais, nos currículos, nas práticas pedagógicas, na organização do trabalho da escola.
Com a predominância de pesquisas sobre a escolarização no campo educacional, a
mídia é pouco estudada na perspectiva de educação. Uma perspectiva “escolarizada” de
educação dificilmente captará o lugar da mídia como processo formador e educativo.
Como se pode notar, a mídia tem caráter educativo evidente e, sendo assim, não pode
deixar de ser objeto de estudo do campo da educação. Seu papel, paulatinamente, tem sido assunto de diversas áreas de conhecimento.
O masculino aparece nesse diálogo, porém, de forma pouco problematizada. Geralmente, ele se apresenta como a referência para determinados comportamentos e aspirações do tipo de mulher que essa mídia privilegia. Além disso, o masculino com o qual tais publicações dialogam diz respeito a um determinado recorte dentro da gama de possibilidades que esse universo incorpora.
Carolina dos Santos de Oliveira
AS ADOLESCENTES NEGRAS NO DISCURSO DA REVISTA ATREVIDA
Belo Horizonte- 2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- FACULDADE DE EDUCAÇÃO
segunda-feira, janeiro 17, 2011
Do pecado ao perigo
A idéia de sexo desempenhou três funções no dispositivo da sexualidade. Em primeiro lugar, permitiu agrupar em uma unidade elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres; esta unidade fictícia tem funcionado como princípio causal, significado presente em todos os segmentos, segredo que é preciso descobrir. Em segundo lugar a idéia de sexo tem servido para marcar a superfície de contato entre o saber da sexualidade e as ciências biológicas; deste modo, o saber da sexualidade recebeu, por vizinhança, a garantia de um saber biológico e fisiológico como princípio para estabelecer a sexualidade normal. Em terceiro lugar, a idéia de sexo permitiu inverter a representação das relações entre o poder e a sexualidade. De fato, se pensou esta relação em termos de repressão, de lei, de proibição; deste modo, sua dinâmica produtiva se tornou disfarçada.
A sexualidade é, segundo Foucault, o nome que se pode dar a um dispositivo histórico, no qual "a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder” (FOUCAULT, 2005-b, p. 100).
Quando questões como saúde, higiene, alimentação, natalidade e expectativa de vida
tornam-se preocupações social e política, ocorre a atuação de políticas públicas que intervêm no conjunto da população. Constitui-se aqui o bio-poder, ou o poder sobre a vida, consolidando uma “grande medicina social que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do poder”.
Algumas palavras a respeito de dois termos que têm sido utilizados para definir o
processo de abordagem do tema sexualidade nas escolas: educação e orientação sexual.
Alguns manuais desenvolvidos por Organizações Não Governamentais (ONG) e livros mais
recentes de autores a elas vinculados adotam o termo orientação sexual, considerando-o como o mais adequado, pois este definiria um processo sistemático, planejado e desenvolvido por profissionais capacitados, ao contrário de educação sexual, que consistiria num processo informal construído ao longo de toda a vida do indivíduo com a participação de familiares, amigos, comunidade e mídia.
Entretanto, educação sexual permanece como o termo mais utilizado na maioria dos países, pela imprensa, pelo público em geral e pelas pessoas envolvidas com este tema nas escolas. Outro fator que considero desfavorável ao uso de orientação sexual é que esta é a mesma expressão utilizada para definir a identidade erótica dos indivíduos em heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Nesta dissertação adoto o termo educação sexual, por considerar que o mais adequado é utilizar os conceitos de educação formal e informal. O primeiro preenche os requisitos que estão sendo requeridos para a orientação (planejado, sistemático, organizado, efetuado por pessoas tecnicamente preparadas), enquanto que o segundo se enquadra na educação adquirida na vivência individual, nas trocas com pais, amigos, colegas
e meios de comunicação.
Em relação à adolescência, é prevalente entre pais, professores e outros profissionais a justificativa de condutas individuais como “típicas” da idade, como a “natureza” rebelde, imatura, inconseqüente ou irresponsável, conceitos que se organizam para proporcionar a construção do discurso que constitui a adolescência. Atualmente pouco se utiliza o conceito de instinto, mas a justificativa mais freqüente para o comportamento dos adolescentes é a ação hormonal, a qual além dos aspectos biológicos determinaria um amplo conjunto de comportamentos.
É o jovem masculino que precisa ser preparado para encontrar forças que lhe permitam
resistir ao “instinto copulador de macho”, no qual o coito se torna uma necessidade imperiosa e onde “o excesso de seiva que nele borbulha” exige uma solução. O
padre Negromonte (1951) justifica a atração carnal mais forte no homem como disposição da Divina Providência, pois o resultado desse comportamento agressivo e ativo seria a geração dos filhos. Segundo esse autor, se no homem a grande força sexual, a primeira que aparece, a que mais se salienta, é o desejo do prazer, na mulher este desejo é muito atenuado e vago, permanecendo quase sempre silencioso e adormecido antes do casamento
Enquanto a moça quer apenas sentir que é amada, quer o carinho de um gesto, o amparo de um braço a que se apóie, de um ombro a que se acoste, o rapaz, mesmo que procure o conforto deste amor puro, a presença desta que lhe será a companheira, nunca excluirá disso a preocupação sexual. Aquelas carícias que para as moças talvez sejam inocentes e quase diríamos infantis, que não lhes deixam senão a impressão agradável e até pura de que são amadas, estão provocando incêndios no coração do rapaz. A moça, porque “não sente nada com aquilo”, porque “aquilo não lhe faz mal nenhum”, não imagina, e nem pode mesmo imaginar o que sente o moço, o mal que faz aquilo. Ele arde, as mais das vezes, em desejos sexuais. O que para ela é uma carícia, é para ele uma provocação (NEGROMONTE, 1951, p. 152).
As frases do médico francês Daniel Alduc (1951 p. 32) - “O amor, propagador da vida,
é, também, um poderoso difundidor da morte” e “este incansável semeador é um rude
manejador de foice” – sintetiza e leva ao extremo o conceito de sexualidade como uma área de alto risco, plena de ameaças e armadilhas, que esconde graves conseqüências para aqueles que nela se aventuram sem a devida orientação. Entre os argumentos em defesa da educação sexual, antes e depois da metade do século, está a necessidade de preparar o jovem para ingressar nesse território representado como perigoso e fornecer-lhe uma espécie de mapa para o seu desbravamento.
Ainda segundo o entendimento da maioria dos autores até os anos sessenta, a preocupação quanto à vulnerabilidade era com os rapazes, pois estes seriam mais suscetíveis aos clamores do instinto, enquanto que as adolescentes não estariam incluídas nesta situação de risco por não apresentarem comportamentos nesse sentido. Apenas aos rapazes era exigido um controle sobre a atividade sexual, evitando a procura de prostitutas e o contágio com doenças venéreas, valorizando a castidade como uma atitude que enobrece o indivíduo.
Nesse período, as jovens recebiam orientações sobre menstruação, cuidados higiênicos e postura social, conduzindo-as para o futuro papel de esposas e mães. Não havia preocupações quanto à possibilidade de atividade sexual, algo considerado improvável para uma moça solteira. Delas não era exigido o combate ao próprio instinto sexual, mas precisavam enfrentar o dos namorados e noivos e para isso eram orientadas a não cederem às pressões destes, que muitas vezes exigiam prova de amor ou ameaçavam com a ruptura da relação.
Apenas nos livros publicados na década de oitenta é que a atividade sexual das jovens começa a ser reconhecida e o “sexo fora do casamento só não escandaliza mais as ‘boas’ famílias quando é banalizado nas novelas de televisão” (COLLING, 1997, p. 42). A partir de então a gravidez na adolescência torna-se um problema a ser prevenido e motivo de preocupação para os profissionais da saúde, educadores, pais e sociedade em geral.
A partir dos anos setenta, com o uso de novos antibióticos, cuja eficácia e acessibilidade – por receita médica ou livre acesso nas farmácias – evoluíram rapidamente, a incidência e a gravidade das doenças venéreas diminuíram significativamente e com isso a preocupação com a sua disseminação. Mas esta situação não durou por muito tempo. No início dos anos oitenta a Aids surgiu como ameaça à vida, inicialmente para os então denominados “grupos de risco” e a seguir para toda a população. E as doenças venéreas ressurgiram (agora com outro nome:
doenças sexualmente transmissíveis) como o grande perigo a ameaçar os jovens em suas
experiências sexuais.
Novos tempos, novos perigos. Considerando-se os desajustes e as anomalias comportamentais, a possibilidade de contaminação pelas doenças venéreas, a epidemia da Aids e a possibilidade de uma gravidez considerada como precoce, percebe-se que o sexo nunca deixou de ter a seu lado “más companhias”.
O estímulo a falar de sexo foi o que construiu o discurso e a verdade sobre o sexo. Os manuais médicos sobre atendimento ao adolescente recomendam que durante a entrevista individual o paciente seja questionado sobre namoro, envolvimento físico, preferências sobre práticas sexuais, número de parceiros, conhecimento e/ou uso de métodos anticoncepcionais e doenças sexualmente transmissíveis, conduta compatível com o discurso generalizado de que ao chegar à adolescência o sexo torna-se algo intenso, forte, inevitável, que precisa de ajustes, controle e supervisão.
A preocupação, aprendida nos manuais médicos e assumida como correta e adequada,
de investigar sobre sexo, fazer perguntas, desvendar os segredos, nos trouxe não a resposta esperada de desvelamento do “mundo sexual dos adolescentes”, mas um questionamento de que talvez sejamos nós adultos, enquanto pais, professores e profissionais, que estamos mais preocupados do que os próprios jovens e produzindo um contexto de “importância do sexo”.
E nessa prática de estimular a falar de sexo, estamos dando continuidade ao processo de construção dos discursos e da verdade sobre o sexo.
Cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos (FOUCAULT, 2005-b, p. 27).
Além dos temas relacionados nos tópicos anteriores, há outras justificativas para a
educação sexual: a) o risco de receber orientações inadequadas – “Os colegas sempre são maus mestres neste assunto” (NEGROMONTE, 1951, p. 76) e “o silêncio precipitará os filhos nas mãos dos corruptores” (ibidem, p. 19); b) as influências negativas dos “perigosos contatos com o cinema, as revistas ilustradas, os cartazes, as conversas levianas de casa, a semi-nudez das praias e piscinas” (ibidem, p. 91), das leituras pornográficas (NÉRICE, 1961) e dos meios de comunicação que usam e abusam da sensualidade como técnica de marketing (VITIELO, 1997); c) a precocidade do envolvimento com as questões sexuais desencadeada pelo meio social, fazendo com que “a inquietação sexual, que só deveia chegar com a puberdade” se antecipe e faça “dos nossos meninos uns precoces sexuais” (NEGROMONTE, 1951, p. 91);
d) os perigos que o segredo pode representar ao gerar curiosidade, insatisfação e
intranqüilidade, pois a idéia de que a inocência protege é falsa e a ignorância freqüentemente gera angústia, culpa e gravidez indesejada (SUPLICY et al, 2000).
São justificativas que caracterizam o adolescente como despreparado nesta área, sendo o seu desconhecimento uma realidade que “é triste e desoladora entre nós, [...] levando o adolescente a percorrer caminhos penosos, quando em seu lugar poderia ter gratas alegrias e uma vida mais sadia” (COSTA, 1986, p. 7). Vitielo (1997, p. 63) ressalta ser chocante o nível de desinformação exibido por adolescentes numa sociedade como a nossa que tanto preza e valoriza o fato de estar bem informado, o que leva a sexualidade a ser exercida, em todas as camadas sociais, sem qualquer preparo formal ou informal, “iniciando-se habitualmente na
hora errada, com a pessoa errada e pelos motivos errados”. Percebe-se nesta construção de uma imagem de incompletude como característica da sexualidade adolescente a justificativa para a necessidade de fornecimento das devidas
informações, pois sem elas, conforme Suplicy (2000), o indivíduo poderá ver comprometida as suas possibilidades de ter uma vida sexual harmoniosa e ser conduzido a uma vida sexual e afetiva infeliz e empobrecida. Outra opinião que segue o mesmo argumento é o de Egypto (2003), ao afirmar que a ignorância não protege ninguém de nada, ao contrário, torna o jovem mais vulnerável às situações por não saber lidar adequadamente com elas ou por não dar conta dos medos, das ansiedades, das dúvidas e dos questionamentos que vão se desenvolvendo ao longo da vida. Em relação a esta preocupação com os perigos da desinformação, percebe-se
que mesmo quando associamos o final do século com novos tempos, os discursos
permanecem velhos.
Aparentemente não, pois os dados a respeito “da alta incidência de gravidez precoce, do elevado número de mortes ou seqüelas em mulheres provocadas por
aborto clandestino, do crescente número de recém-nascidos infectados pelo vírus HIV”5 são indicadores do “analfabetismo da sexualidade da adolescência contemporânea” (BOARINI, 2004, p. 188-9).
Conclui-se que a educação sexual, segundo esses autores, é necessária porque o
adolescente precisa ter acesso às informações adequadas e de alguém que lhe mostre o
caminho, que lhe diga como agir, o que fazer e o que evitar, caso contrário ele será
incompetente sexualmente, talvez não seja feliz, não fará o outro(a) feliz, além de estar correndo graves riscos quanto à sua integridade física. Inserido nesta linha de pensamento está o conceito do acesso à informação repassada pelos adultos como condição indispensável para que os jovens tenham aptidão para tomarem decisões com responsabilidade.
Ainda nesta mesma linha de argumentação, eles precisariam, portanto, de um
passaporte, um salvo-conduto que lhes permita, futuramente, ingressar no mundo da
sexualidade adulta, mundo no qual, finalmente, seus integrantes estariam em condições privilegiadas de controlar os instintos, tomar decisões, desviar-se das situações de risco e estar consolidado na prática da virtude.
Estado, igreja, medicina, justiça e educação atuam na família no sentido de interferir nas suas ações, designar os papéis de seus integrantes, definir quais normas ela deve seguir, quantos indivíduos deve conter, qual tipo de vestuário deve usar, o que deve consumir, em quantos e quais cômodos deve viver e como e com quem deve se relacionar. Esta atuação das instituições sobre a família é perceptível do casamento à separação, do nascimento dos filhos ao óbito de seus integrantes, da aquisição à venda de bens, da renda familiar às despesas efetuadas, sendo constante a exigência de que tudo seja documentado, registrado em cartório, assinado com testemunhas e comprovado com recibos.
A parte mais substancial do investimento no dispositivo da sexualidade aplicado pela
igreja, pelo Estado e por outras instâncias, como a mídia e a propaganda, foi aplicada na família. É no seu interior e nas relações entre seus integrantes que se ergueram as regras mais elaboradas e as interdições mais sólidas a respeito do sexo. É onde também se detectaram os maiores problemas, os desvios mais sérios e a necessidade de intervenções terapêuticas mais amplas.
É ainda a família o eixo que liga os dispositivos da aliança e da sexualidade. Enquanto o da aliança está relacionado ao matrimônio, à reprodução, ao parentesco, à transmissão de nomes e bens e estrutura-se em regras para manter a homeostase social, o da sexualidade, apesar de também se articular entre parceiros sexuais, está vinculado ao prazer e à economia do corpo que produz e consome (FOUCAULT, 2005-b). Através do corpo feminino, da sexualidade infantil, do controle da natalidade e dos comportamentos perversos, os discursos articularam estes dispositivos através da família, os quais se materializaram na mulher nervosa, frígida e indiferente, no marido impotente ou perverso, na criança precoce e no
jovem homossexual.
Desde a consolidação, no final do século XIX e início do XX, da família brasileira
como local de investigação, de controle e de permanente vigilância a respeito da sexualidade infantil e adolescente, dos quais devia exigir as confissões mais íntimas e a temer suas manifestações sexuais, algumas mudanças ocorreram.
Mas se estas mudanças resultam do fato de alguns valores, costumes e normas não serem mais os mesmos, não significaram a perda da vigilância sobre a família nem o fim da necessidade de intervenção. Agora os medos deixaram de ter origem nas crianças e nos adolescentes do sexo masculino, e se deslocaram para a gravidez considerada precoce da adolescente e o desejo sexual dos pais e o que estes “gostam
de fazer com (e a) seus filhos”, os quais passam a ser considerados principalmente objetos sexuais e vítimas potenciais de seus pais como sujeitos sexuais.
gravidez na adolescência e o abuso sexual, temas vinculados a políticas públicas, assumiram uma visibilidade antes nunca experimentada, desencadeando campanhas na mídia, programas preventivos e medidas punitivas.
Atualmente, na opinião de muitos, o seu lugar é o de coadjuvante, e na de outros, situa-se no limbo entre a omissão, a incompetência e a situação de risco. Considerada há muito tempo como o local ideal para a intervenção de ações religiosas, médicas, políticas e econômicas, a família não poderia deixar de ser envolvida na formação sexual de seus filhos, e, mesmo quando a escola é convocada para assumir essa função, ela não deixa de participar, seja como produtora, permissionária ou, mais recentemente, como estorvo.
Na família, o enfoque sobre sexo tende a tomar formas indiretas, pouco claras, envolvidas em subterfúgios, reticências, segredos, as quais nem sempre se caracterizam como diálogos entre pais e filhos (BRANDÃO, 2004). A desigualdade hierárquica, o envolvimento afetivo, o tipo de relacionamento conjugal e parental, são fatores que determinam uma especificidade à educação sexual familiar que a torna única e insubstituível, pois ela estará ocorrendo sempre, mesmo que não utilize palavras ou prescrições.
A partir dos anos 80, os discursos favoráveis a consolidação da escola como local para a educação sexual e à necessidade de formação de professores para desenvolverem programas nesta área deslocam a família para um papel secundário. Neste sentido, ocorreu a descaracterização da competência dos pais como educadores sexuais e a família não apenas perdeu a autonomia sobre a sexualidade de seus filhos, como foi responsabilizada por enviar às escolas alunos desinformados e com atitudes negativas em relação ao sexo. Neste cenário, a escola é incumbida da função de reverter um quadro considerado tenebroso, no qual os alunos são recebidos com uma forte carga de tabus, preconceitos, conflitos, sentimentos de culpa e dúvidas:
Parece-nos claro que a melhor educação seria a que fosse propiciada pelos próprios pais, pois nenhuma estrutura social consegue atuar tão precocemente, com adultos tão significativos, por tanto tempo e de forma tão importante sobre o ser humano em sua fase de formação de personalidade, como a família. No entanto, como regra geral, os pais têm notória dificuldade em falar de sexo com os seus filhos. [...] São dificuldades de cunho cultural, que somente serão superadas com muito esforço pessoal e grandes lutas internas pois nós, adultos, somos filhos de nosso meio e de
nossa época, sendo ao mesmo tempo agentes e vítimas dos preconceitos vigentes. Assim sendo, pelas dificuldades enfrentadas pelos pais, somos obrigados a nos valer do ensino formal, que nos parece ser, a médio e longo prazo, a solução mais viável no momento histórico que nossa sociedade está vivendo (VITIELLO, 1997, p. 101-2)
Além da alegada incompetência dos pais, surgiram outros argumentos em detrimento da
família. Um deles é defendido por Suplicy (2000, p. 33) ao caracterizar a adolescência como problema e durante a qual “normalmente a família se constitui num lugar de tensão e conflito”, dificultando a abordagem de certos assuntos pelos pais, os quais poderiam ser discutidos na escola com mais liberdade.
A família foi, com o evoluir das décadas do século XX, de certo modo deslocada em
relação à função de educadora sexual e, além de ceder esta função para a escola e assumir sua condição de incapacidade e de produtora de tabus e insegurança, passou à condição de suspeita. Estes e outros discursos conduziram os pais a se convencerem de sua incapacidade e da necessidade de terceirizarem a educação sexual de seus filhos, levando-os a confirmarem nas pesquisas que sim, preferem que a escola assuma essa função. E, de certa forma, a desconsiderarem que em sua convivência diária são responsáveis por alguns aspectos da educação sexual:
A educação sexual informal que se realiza no âmbito da família tem importância particular sobre o desenvolvimento da criança e a formação de grande parte de suas idéias sobre família, amor e sexualidade, dependendo da organização e estrutura da família, pelas suas condições de vida, pelas dinâmicas de relacionamentos entre seus membros e pelas características individuais de pais e filhos.
Os pais desempenham o papel de educadores do domínio da sexualidade, muitas vezes inconscientemente, educando mais pelo que fazem do que pelo que dizem. São modelos de homens e mulheres, marido e mulher e como pessoas sociais, que ensinam o que cada um destes papéis representa, incluindo os conceitos de masculinidade e feminilidade, construindo ou reforçando estereótipos (WEREBE, 1998, p. 148).
Exige-se hoje da escola não apenas a produção, a transmissão e a aquisição de conhecimento, mas a solução de inúmeros problemas relacionados a questões tão diversificadas como saúde e higiene, prevenção do uso de drogas, preservação do meio ambiente, disciplina e comportamento, as quais antes eram assumidas pelas famílias.
Há uma outra forma que, embora explícita, também não é reconhecida. Ela se dá nos
interstícios da escola e dos relacionamentos, deixando seus rastros nos corredores, nos pátios de recreios ou nos locais de atividades físicas. Suas marcas mais visíveis ficam nas classes rabiscadas, nas portas e paredes dos banheiros, nos bilhetes trocados e nas agendas compartilhadas. E as mais sutis, mas também duradouras, se instalam nos corpos e nas mentes daqueles que se empurram, se tocam e se abraçam. A única maneira em que as questões sexuais são formalmente admitidas na escola, recebidas com solenidade na porta da frente e divulgadas como investimento no bem estar dos alunos é quando ela convida um profissional para proferir uma palestra ou quando assume um programa de educação sexual.
Em seu cotidiano, a escola finge que ignora o sexo e diz que, no seu interior, sobre ele não se fala. E quando ele aparece e assinala sua presença de forma que não possa ser ignorado, é considerado como um intruso cuja responsabilidade é das famílias “desestruturadas”, que não souberam contê-lo em seus filhos, ou de uma sociedade e uma mídia que o banalizam e estimulam comportamentos inadequados. A escola não se reconhece como produtora de atitudes sexuais, mas apenas como responsável por corrigir os comportamentos considerados desviantes e de risco que seus alunos trazem para dentro de seus muros.
A escola é, portanto, um espaço sexualizado, onde alunos e professores vivenciam
experiências, definem conceitos de normalidade, determinam as diferenças e estabelecem verdades sobre sexo, gênero e relacionamentos.
Autores como Ribeiro (1990), Sayão (1997) e Reis e Ribeiro (2004) relatam a história dos programas pioneiros em educação sexual em diversas escolas de algumas capitais brasileiras até os anos sessenta, tendo o Colégio Batista, no Rio de Janeiro sido o primeiro a incluir em seu currículo o ensino da evolução das espécies e da educação sexual em 1930, embora posteriormente o professor responsável pela iniciativa tenha sido processado e demitido.
O padre Negromonte (1951, p. 76) condenou a abordagem de temas sexuais de forma coletiva, consideradas como contraproducente por colocar em circulação entre os alunos “um assunto de que seria conveniente eles nunca falarem entre si”.
Havia uma concessão em relação ao ensino coletivo: as escolas católicas poderiam
abordar questões sexuais, pois eram as únicas capazes de desempenharem esta função, ao contrário dos ginásios e escolas não religiosos, “onde meninos e meninas, rapazes e moças brincam encurralados, numa promiscuidade sem par, [...] não são portas escancaradas à perdição?” (ALMEIDA, 1946, p. 27). Esta concessão era viável porque nas escolas católicas existia a possibilidade de por em ação o discurso religioso sobre sexualidade, no qual se louvava a castidade e defendia a reprodução como única finalidade do ato sexual.
A partir da década de oitenta outros fatores reforçaram a posição da escola na educação sexual: o surgimento da epidemia de Aids e a preocupação com os índices de gravidez na adolescência. Estas questões foram importantes para legitimar a educação sexual na escola e justificar os discursos em sua defesa, os quais receberam a conotação científica necessária para superar as opiniões em contrário. Simultaneamente, a família foi definida como uma instituição incompetente para proporcionar informações adequadas, reforçando a sua condição de ambiente produtor de tabus, preconceitos, medos e insegurança quanto à sexualidade de seus filhos.
É nessa linha de argumentação que no livro “Sexo se aprende na Escola” (SUPLICY et
al., 2000), os autores defendem ser função do Estado propiciar à sociedade informação e orientação sobre sexualidade, bem como o acesso aos meios de anticoncepção, além de definir alguns objetivos da educação sexual na escola: a) reverter a freqüente situação de infelicidade na vida sexual e afetiva das pessoas, pois a falta de informações deixa o aluno enredado em medos e preconceitos; b) proporcionar o bem-estar sexual, ajudar na formação da identidade, abrir canais de comunicação e ajudar a repensar valores; c) desenvolver o potencial de felicidade a que os alunos têm direito.
E os argumentos em defesa da escola se multiplicam. No mesmo livro acima citado, os
autores afirmam que a escola não pode fugir à responsabilidade, pois além de transmitir a noção de que o assunto é um tabu, sobre o qual não se pode falar, perpetuando a vivência de uma sexualidade empobrecida, estaria sendo omissa em relação à influência da mídia e às ameaças representadas pela Aids, pela gravidez indesejada e pela violência sexual dentro e fora de casa. E acrescentam ser função da escola contribuir para uma visão positiva da sexualidade como fonte de prazer e realização do ser humano e que na ausência de um espaço para discussão, esta “se transforma em fonte de agressão, balbúrdia e exibicionismo”.
Os defensores da escola também se utilizam de uma descrição idealizada da realidade escolar em seus argumentos, descrevendo-a como um ambiente no qual o aluno pode “desenvolver o pensamento e a capacidade crítica, no sentido de não aceitar nem rejeitar valores sem antes analisá-los” (SUPLICY et. al., 2000, p. 13) e onde a educação sexual pode ser abordada com “ampla liberdade de expressão, num ambiente
acolhedor e num clima de respeito” (ibidem, p. 8-9).
Se a igreja ignora que a família pode ser uma situação problemática e conflituosa, também em relação à escola fica obscurecida uma realidade que não se caracteriza por ser relativista, estimulante e afável.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados pelo Ministério da Educação
e Desporto em 1997, têm, entre outros, os objetivos de constituir-se numa ferramenta
disponibilizada aos professores brasileiros para ser utilizada no sentido de promover uma reflexão sobre os currículos escolares e como um referencial para a renovação e reelaboração da proposta curricular, além de apontar metas de qualidade que ajudem o aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão participativo, reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres (BRASIL, 1997). Constituído por dez volumes distribuídos às escolas, os PCNs contêm um documento introdutório, seis documentos referentes às áreas de conhecimento (língua portuguesa, matemática, ciências naturais, história, geografia, arte e educação física) e seis documentos referentes aos Temas Transversais (ética, meio ambiente, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e trabalho e consumo).
Os Temas Transversais procuram, segundo o texto introdutório dos PCNs, traduzir as
preocupações da sociedade brasileira e correspondem à questões importantes, urgentes e presentes sob várias formas na vida cotidiana. Propõem, também, um desafio às escolas para que estas promovam um debate sobre estes temas introduzindo-os nas áreas já existentes nas atividades educativas da escola, sem criar novas disciplinas, organizando o trabalho didático na forma de transversalidade.
Os PCNs foram definidos como uma proposta às escolas brasileiras, não se tratando de uma normativa a ser obrigatoriamente adotada e sim como um material aberto e flexível a adaptações regionais que pode ou não ser utilizado, preservando a autonomia de professores e equipes pedagógicas.
Os PCNs consideram como objetivos gerais dos programas de educação sexual para o
ensino fundamental proporcionar ao aluno condições de, entre outras habilidades, respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos à sexualidade; compreender a busca de prazer como uma dimensão saudável da sexualidade humana; conhecer seu corpo e valorizar e cuidar de sua saúde; reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores; conhecer e adotar práticas de sexo protegido; ao iniciar relacionamento sexual evitar contrair ou transmitir doenças sexualmente
transmissíveis, inclusive o vírus da Aids; desenvolver consciência crítica e tomar decisões responsáveis a respeito de sua sexualidade e procurar orientação para a adoção de métodos contraceptivos (BRASIL, 1997)8.
As viradas para os séculos XX e XXI não alterou a necessidade de corrigir os problemas familiares e os especialistas permanecem empenhados em estabelecer medidas de controle, interpretar os problemas das famílias consideradas como desestruturadas, normatizar o sexo e prescrever exercícios. Os especialistas contemporâneos permanecem fortemente vinculados ao cienticifismo e, segundo Costa (1979, p. 16), ao repetirem os mesmos discursos dos higienistas, promovem “maior disciplina, maior vigilância e maior repressão”. As ONGs e os especialistas assumiram a função dos higienistas.
É impreciso o limite entre o que a educação sexual, através de seus discursos, contribui para construir, como o conceito de gravidez precoce, e o que ela primeiro precisa entender e assimilar, para só então incluir em seus textos, como é o caso do comportamento relacional entre adolescentes contemporâneos denominado ficar. Mas mesmo que estejam ora produzindo cenários no qual organiza a condução de seus atores, ora atuando no entorno destes cenários e atores, os discursos sobre educação sexual não se diferenciam dos demais ao não se tratarem simplesmente de descrições dos atos, mas da incessante produção dos roteiros.
Schwartz (1974, p. 145) reconhecia que não era verdade ter o fluxo menstrual um
caráter venenoso como lhe foi atribuído durante séculos, mas afirmava que a “mucosidade nele contida parece possuir, às vezes, qualidades irritantes e capazes de fazer mal”. Segundo este autor, a menstruação poderia estar ainda relacionada às doenças venéreas: “Numerosos fatos parecem comprovar, realmente, que a secreção de pus pela uretra do homem pode provir do contato com o fluxo menstrual”. Esta associação entre menstruação e os mais diversos problemas estão vinculadas a muitos outros discursos produzidos pelos homens que tinham como objetivo desqualificar a mulher e ressaltar a diferença entre os sexos, em que os atributos femininos ocuparam o lugar negativo, inferior e produtor de doenças.
É neste contexto idealizado como universal e a-histórico que o adolescente é concebido por um discurso que diz compreender sua essência e ser portador de alternativas para corrigir os seus problemas. E é neste mesmo contexto que o adolescente é objeto de uma educação sexual cuja utilidade é inseri-lo numa sexualidade adulta e responsável, livre dos riscos considerados típicos desta fase da vida ainda em construção. Do início ao fim do século, e talvez durante os próximos, os discursos sobre educação sexual não se afastarão do princípio de falar com um adolescente único.
Um texto do papa João Paulo II intitulado “Carta às Famílias” e divulgado em 1994
reafirma a posição da igreja no sentido de que a educação sexual deve estimular a disciplina de guardar-se sexualmente para a pessoa amada.
A educação sexual, direito e dever fundamental dos pais, deve fazer-se sempre sob a sua solícita guia, quer em casa quer nos centros educativos escolhidos... Neste contexto é absolutamente irrenunciável a "educação para a castidade" como virtude que desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar e promover o 'significado nupcial' do corpo.
Por isso a Igreja opõe-se firmemente a uma certa forma de informação sexual, desligada dos princípios morais, tão difundida, que não é senão a introdução à experiência do prazer e um estímulo que leva à perda – ainda nos anos da infância – da serenidade, abrindo as portas ao vício.
O conhecimento deve conduzir a educação para o autocontrole: daqui a absoluta necessidade da castidade e da permanente educação para ela. Segundo a visão cristã, ela significa antes a energia espiritual que sabe defender o amor dos perigos do egoísmo e da agressividade e sabe voltá-lopara a sua plena realização. O resto é incitar o sexo fora de hora e fora de lugar.
A interpretação atual do tema castidade começou a se constituir nos livros publicados a partir da década de oitenta. Autores – como médicos e psicólogos – escrevem para os leitores adolescentes que a castidade não é uma imposição e sim uma opção para ambos os sexos. O psiquiatra Costa (1986), num dos capítulos de seu livro intitulado “Virgindade: necessária ou obsoleta?”, aconselha que a decisão dos adolescentes (masculinos e femininos) sobre a conservação ou não da virgindade deve ser uma opção definida por escolha pessoal e não partir de um condicionamento, preconceitos ou pressão familiar e social. E a psicóloga Sayão (1995, p. 19) afirma aos seus leitores que “sexo é bom, é gostoso, é natural, dá prazer” e que há muitas maneiras de contato sexual - “tem o tradicional papaimamãe, tem sexo oral, tem sexo anal, tem 69, tem tantas coisas!” (ibidem, p. 61) -, ressaltando que o mais importante é aquilo que cada um está a fim de curtir, reconhecendo o que deseja, pode e consegue fazer, desde que respeite seus limites e os de seu par. A autora
desvincula o ato sexual do amor e sugere aos adolescentes desfrutar do sexo o que ele pode dar de positivo, não transformando ou permitindo que transformem uma “coisa tão legal em algo assustador, aterrorizante” (ibidem, p. 125).
Durante muito tempo a virgindade feminina necessitou de proteção e vigilância.
Somente a partir da segunda metade do século XX, quando os métodos contraceptivos mais eficazes e de acesso mais fácil romperam o vínculo secular entre o ato sexual e a reprodução, que a interdição do ato sexual antes do casamento deixou de prevalecer para ambos os sexos.
É verdade que ainda permanece certo limite quanto ao número de parceiros com os quais a adolescente se relaciona, capaz de ser o fator divisor entre o comportamento socialmente aceitável e o que ainda é considerado promiscuidade, mas os textos leigos a partir dos anos 80 sobre educação sexual não ignoram que manter atividade sexual antes do casamento não é mais prerrogativa dos rapazes.
Atualmente os livros sobre educação sexual trazem propostas de debates sobre um
conceito (virgindade), uma escolha (ser ou não virgem) e um momento simbólico: a primeira vez. Em suas páginas é possível constatar o grande investimento sobre este marco na vida do indivíduo através de orientações que se constituem em algo semelhante a um manual de instruções: o que fazer, não fazer e como fazer, quais são os medos e as dúvidas, o acontecimento ou não de sangramento e dor, quais as posições e o local adequados.
Os argumentos utilizados para condenar a masturbação se basearam em associações
com eventos normais da puberdade (como o crescimento de pelos nas mãos e o surgimento de espinhas), com doenças (como a cegueira e a loucura) e em argumentos biológicos como o consumo de espermatozóides (que iriam faltar mais adiante). Estas associações oportunistas, falsas e ameaçadoras desencadearam nos pais a necessidade de vigiar e investigar e, nos jovens, a angústia da culpa e a necessidade da confissão.
O ato masturbatório não teria se constituído da importância que lhe foi devida se, como tantos outros hábitos humanos, não tivesse proporcionado a possibilidade da indução da vigilância permanente e com ela a penetração no íntimo das famílias e dos indivíduos, estratégia tão cara aos sistemas de poder. Tratou-se na verdade não de combater, evitar ou condenar, mas de estimular e valorizar como algo íntimo, um segredo, algo que exige da consciência um constante envolvimento e atenção em relação ao corpo e uma permanente necessidade de confessar seus excessos.
A abordagem do tema homossexualidade nos livros de educação sexual é um dos
exemplos da transitoriedade não apenas dos discursos, mas das verdades científicas. Durante o transcorrer do século XX é possível observar os deslocamentos discursivos que conduziram a homossexualidade da condição de perversão ao reconhecimento de que se trata de uma das maneiras do indivíduo vivenciar sua sexualidade, tendo transitado também pela categoria de doença.
Os primeiros livros sobre educação sexual abordavam o tema homossexualidade (na
época ainda denominada de homossexualismo) com o intuito de destacar o seu caráter de anormalidade e de chamar a atenção para o fato de que ela poderia se manifestar
eventualmente em qualquer indivíduo que não tomasse certos cuidados, seja em conseqüência de problemas de saúde, seja por comportamentos inadequados. A vigilância tanto dos pais como dos próprios adolescentes era necessária para preservar a heterossexualidade.
A opinião da igreja, entretanto, não acompanhou esta trajetória de absolvição.
Apoiando-se na Sagrada Escritura, os textos católicos ainda incluem a homossexualidade na categoria de depravação grave e contrária à lei natural ao fechar o ato sexual ao dom da vida.
Este comportamento considerado anormal e oposto à lei de Deus é, segundo os autores
católicos, devido a desequilíbrios que se desenvolvem na criança ou no jovem por problemas familiares – separações, brigas dos pais, mãe dominante, pai fraco, obsessão da mãe pelo filho, desinteresse e grosseria do pai, forte insegurança, experiência sexual fracassada ou traumática na adolescência ou educação sexual mal conduzida. – (AQUINO, 1996).
Considerando este conjunto de fatores desencadeantes, a igreja defende que a prevenção é a melhor terapia.
Um dos caminhos adotados no trajeto cujo destino era a absolvição da homossexualidade como desvio ou anormalidade foi o do reconhecimento do direito da opção individual. Caminho que não obteve sustentação por muito tempo devido à conclusão de que a homossexualidade ou a heterossexualidade não são objetos de escolha pessoal, de que não há um momento na vida do indivíduo no qual ele possa escolher entre as duas alternativas e de que provavelmente poucos homossexuais, se essa opção lhes fosse proporcionada, teriam escolhido o caminho da exclusão, discriminação e vitimização que lhes é imposta.
Esta trajetória para liberar a homossexualidade do estigma de anormalidade lembra
uma outra que há muito já atingiu seu objetivo: a questão da lateralidade. Aproximadamente dentro dos mesmos índices reconhecidos de indivíduos homossexuais (cerca de 10% da população), os canhotos foram durante muito tempo discriminados, corrigidos – inclusive com o uso de violência – e classificados de anormais. Atualmente o fato de escrever com a mão esquerda pode até chamar a atenção de algumas pessoas, mas está distante dos rótulos pejorativos e não se cogita em corrigir a criança com esta característica. Por algum motivo, que não cabe aqui desvendar, a necessidade de repressão aos canhotos deixou de ser interessante.
O reconhecimento de que existem diversas formas de relacionamentos amorosos, sem
que nenhum deles esteja no centro ou na periferia da normalidade consolidou-se nos livros sobre educação sexual do final do século XX. O discurso considerado politicamente correto que condena qualquer tipo de discriminação e defende o respeito pelas diferenças torna-se preponderante e os autores adotam a defesa da diversidade, desvelando mais uma vez a mobilidade dos marcadores que definem as fronteiras entre o normal e o desviante.
Ou seja, na conversa informal entre iguais o gay continua um desviante, motivo de
piada e ironia, mas durante uma atividade coletiva formal são raros aqueles que ainda defendem uma postura condenatória.
A constituição do normal sempre precisou não apenas de constante vigilância, mas da condenação do que nele não se enquadra, tendo sido a homossexualidade o objeto necessário de rejeição para permitir a produção da heterossexualidade. Mesmo quando
ocorreu o deslocamento da perversão para a doença, o indivíduo homossexual permaneceu estigmatizado. Segundo Badinter (1993, p. 106), “uma vez que a nossa concepção de masculinidade é heterossexual, a homossexualidade desempenha o útil papel de contraste, e sua imagem negativa reforça a contrário o aspecto positivo e desejável da heterossexualidade” (grifo da autora).
Discursos que, ao tomarem todos os lugares, destituíram de muitas
adolescentes o direito de vivenciarem a gravidez e a maternidade como algo positivo e desejável.
No último quarto do século diversos deslocamentos sócio-culturais, como o uso da
pílula anticoncepcional, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a afirmação dos direitos femininos, as alterações nos critérios sobre índices de natalidade adequados, ente outros, conduziram a mudanças significativas nos conceitos sobre a idade apropriada para o casamento e a gravidez, o número de filhos e os papéis de marido e esposa. Instituiu-se a partir de então o consenso de que uma gravidez deveria ser postergada para um período no qual a mulher já estivesse com seus estudos concluídos e inserida no mercado de trabalho.
A partir deste novo contexto, os argumentos contrários à gestação na adolescência
foram sendo construídos e divulgados, contando com o apoio essencial de considerações médicas sobre o assunto, o que contribuiu para torná-la semelhante a uma enfermidade a ser evitada e controlada em termos epidemiológicos. Os meios de comunicação abordam este tema com freqüência, geralmente adotando o discurso alarmista da precocidade, dos riscos, da irresponsabilidade, das conseqüências danosas e da necessidade da prevenção, reforçando o senso comum destas gestações como problemas a serem evitados. Foi dentro deste contexto que a gravidez adolescente teve seu perfil alterado e foi incluída no rol da ilegitimidade, da
irresponsabilidade, do mal a ser incessantemente combatido.
É necessário ressaltar que durante as décadas iniciais do século XX a mulher entre 15 e 18 anos era considerada como adulta e apta a estabelecer vínculos conjugais e maternais, evidenciando a mobilidade dos limites etários da adolescência conforme a época.
O contexto do final do século XX conduziu a educação sexual no sentido de adotar seus maiores e mais contundentes investimentos na prevenção da gravidez na adolescência.
Compatibilizando uma liberdade sexual, na qual todos os adolescentes têm o direito de, se esta for a vontade, ter uma vida sexual ativa, com a inadequação de uma gravidez não planejada e não inserida num relacionamento conjugal, a educação sexual proporcionou uma contribuição efetiva para a construção de um discurso incisivo de condenação da gravidez na adolescência. Neste tema, como em outros incluídos na educação sexual, os discursos adotam o critério do conceito único, válido para todos, de todas as idades e contextos sócioeconômicos.
A regra geral e que deve ser adotada por todos é evitar a gravidez.
Entretanto, diversas pesquisas têm demonstrado que em um número significativo de adolescentes, longe de significar um problema, a gravidez está inserida dentro de um projeto de vida no qual a convivência conjugal e a maternidade são fatores importantes. Nestas situações, a gravidez, independentemente da idade materna, está longe de representar uma crise, pois se situa dentro de um contexto de normalidade, considerando-se este conceito como algo previsível, esperado, desejado e não causador de conflitos. Os dados destas pesquisas mostram um perfil da gravidez na adolescência diferente do conceito de gestação imprevista, indesejada ou conflituosa, e sugerem que muitas adolescentes das classes populares mantêm um
comportamento semelhante aos das mulheres de gerações anteriores em relação à idade
adequada para assumirem a maternidade e o matrimônio.
O discurso único da educação sexual sobre a gravidez na adolescência, ao promover a
conscientização dos adolescentes para que adiem uma gravidez para mais tarde, traz consigo o efeito colateral de conduzir à discriminação e à condenação social àquelas adolescentes que, juntamente com seus companheiros, gostariam de vivenciar com alegria e felicidade a sua gestação.
Condenação que pode ser um dos principais motivos do elevado índice de abandono
escolar das adolescentes grávidas, ao lado de fatores como baixo rendimento escolar e várias repetências. Ao adotar o argumento da inadequação, poucas escolas conseguem sustentar em sala de aula uma aluna que, voluntária ou involuntariamente engravidou.
Outro aspecto que se associa à justificativa de prevenir a gravidez não planejada em
adolescentes, nesta educação sexual que adota o discurso amplamente condenatório, é a substituição do impedimento da relação sexual antes do casamento imposto às jovens. Se antes a adolescente não podia ter atividade sexual, hoje ela não pode engravidar, mesmo quando mantém um relacionamento estável com seu companheiro e deseje esta gravidez, pois esta não será reconhecida como legítima.
O outro discurso é o da igreja católica, que considera a abstinência como a única
conduta aceitável na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e condena o incentivo ao uso do preservativo, pois isto estaria induzindo a promiscuidade. Esta postura tem se mantido ao longo do século e está presente em textos escritos por Barros (1956, p. 132) – “a continência é o único meio de se garantir a si e à própria descendência contra os desastres de infecções que envenenam” – e de Campos (1951, p. 121) ao reconhecer que “quando bate o rijo vendaval das paixões, o medo do contágio não é âncora suficientemente forte para reter a nau desgovernada”, e que só a força da fé cristã e de um ideal religioso são capazes de garantir a castidade e evitar a promiscuidade.
A igreja defende que a educação sexual para os adolescentes deve se fundamentar na
moral, na ética e no ensino do autodomínio e que a outra face do discurso do sexo seguro seria o incentivo ao sexo livre e à imoralidade. Em nota oficial sobre a distribuição de preservativos em escolas, uma proposta dos Ministérios da Saúde e Educação, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) declara que há urgência de um verdadeiro plano de educação sexual que valorize a afetividade, a responsabilidade e a fidelidade. A nota10 afirma também que a verdadeira e plena expressão da relação sexual se encontra no matrimônio e que a população,
especialmente dos adolescentes e jovens, deve ter acesso às informações necessárias que proporcionem um estilo de vida saudável e comportamentos pautados nos valores humanos e cristãos e não apenas na distribuição de preservativos11.
Com os nomes de doenças venéreas ou doenças sexualmente transmissíveis (DST), a
prevenção das doenças vinculadas ao sexo acompanhou a trajetória da educação sexual
durante todo o século. Vincent (1992, p. 382) relata que a primeira metade do século viu-se assombrada pelo avanço da sífilis e por discursos apocalípticos que anunciavam a “sifilização de toda a espécie humana, caso a moral não prevaleça sobre os impulsos”, situação que começou a se reverter após a Segunda Guerra Mundial com o surgimento dos antibióticos. Na segunda metade do século a sífilis e as outras doenças sexualmente transmitidas perderam importância no contexto da saúde pública.
Inserida nesta diretriz, a educação sexual assumiu a função essencial de atuar como um dos instrumentos através dos quais os adolescentes são induzidos a modificar os
comportamentos considerados de risco e assimilarem o uso do preservativo como uma atitude racional e responsável. O sexo seguro tornou-se o aval da sociedade para o exercício da sexualidade adolescente.
A preocupação com a questão dos prazeres, principalmente os sexuais, a relação que se pode ter com eles e o uso que deve ser feito deles, permanece atual. Como atual ainda é a constatação de que não são as interdições, mas a insistência sobre a atenção que convém ter para consigo mesmo, a importância de se respeitar a si mesmo, suportando a limitação e a privação dos prazeres.
A educação sexual reproduz textos que valorizam o cuidado de si, esta “intensificação da relação consigo pelo qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos” (FOUCAULT, 2005-a, p. 47). E mantém, para intensificar e valorizar esta relação de si para consigo, vínculos estreitos com o pensamento e a prática médica, os quais definem maneiras de viver – com o próprio corpo, com o alimento, com a vigília e o sono e com o sexo –, propondo “sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e racional de conduta”(ibidem, p. 106).
O ato sexual é, há muito tempo, considerado algo perigoso, localizado muito próximo
do pecado ou da doença, necessitando ser constantemente vigiado e inserido num sistema de permanente controle.
É constante a tendência de responsabilizar o indivíduo – pela contaminação por doenças, pela obesidade, pela gravidez considerada inoportuna, pelos acidentes –, sem uma análise mais adequada das condições sociais que determinam a vulnerabilidade deste indivíduo a estas situações.
O ficar é um tipo de relacionamento cujas marcas são o descompromisso, a transitoriedade e onde o contato corporal entre os envolvidos é assumido como um
componente esperado desde o primeiro encontro. O desejo de manter contato físico, tocar e ser tocado, sentir excitação e prazer, explorar, conhecer tudo num momeno, não está vinculado a qualquer necessidade de interações posteriores entre os pares.
Agora os amores não são necessariamente únicos e podem ter prazo de validade. Os relacionamentos eventuais são nomeados como possibilidade de vivenciar intimidade, prazer e também, mas não necessariamente, amor.
Uma das normas atuais é a necessidade ou obrigatoriedade da proteção no início dos
relacionamentos sexuais, passando a ser consideradas desviantes, problemáticas ou de risco as relações desprotegidas. A exigência do uso do preservativo vai além do medo da contaminação ou de uma gravidez indesejada ao se configurar numa atitude socialmente responsável e que representa o cuidado consigo que o indivíduo desenvolveu. A substituição de controles e disciplinas externos praticados pelos pais para mecanismos internos dos indivíduos transferiu aos jovens a responsabilidade de “conciliar a exigência de reciprocidade com a realização individual; manifestar simultaneamente espontaneidade e autocontrole; comprovar flexibilidade e coerência em todas as situações” (BOZON, 2004-a, p. 152).
A possibilidade pode ter se tornado um imperativo no qual o sujeito é induzido a
perceber que aquilo que antes era proibido, agora não é apenas permitido ou opcional, mas tornou-se a única opção possível. Ao assumir o conceito de que “se eu posso, eu devo”, o indivíduo adota a obrigação de ter prazer e um bom desempenho sexual como norma, levando-o a buscar recursos artificiais que estimulam uma demanda por medicamentos, como o uso de Viagra por jovens, por implantes de silicone e por métodos que proporcionem o aumento dos órgãos genitais masculinos.
Entre as críticas à sexualidade contemporânea – nomadismo sexual dos indivíduos,
tirania do prazer e do desejo, permissividade e promiscuidade – e os elogios - consagra o direito ao prazer, liberação das minorias sexuais, igualdade sexual entre mulheres e homens, acesso generalizado à contracepção –, Bozon (2004-a) considera que a parte essencial das transformações dos comportamentos sexuais a partir dos anos 60 decorre de mudanças que, em princípio, não dizem respeito à sexualidade, como a massificação da educação ou o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho. E que, por outro lado, as transformações das relações sociais, na e pela sexualidade, talvez sejam menos radicais do que se tem afirmado: elas antes constituem uma interiorização do que um relaxamento dos controles sociais.
Nesta redisposição dos papéis sexuais é perceptível que as transformações de maior
significado se refletiram mais no comportamento feminino do que no masculino. Esta
influência é evidente no rompimento da exigência do casamento para que a mulher tivesse direito à atividade sexual, na autonomia para iniciar e desfazer relacionamentos, na liberdade de decidir sobre o momento adequado para assumir a maternidade. Mas alguns conceitos ainda prevalecem, como o de que os homens se encontram submetidos a impulsos sexuais incontroláveis enquanto as mulheres detêm maior domínio sobre sua sexualidade e de que a multiplicidade abusiva de parceiros sexuais continua comprometendo a honra feminina:
Enquanto os homens são encarados como sujeitos do desejo independentes, as mulheres continuam a ser vistas como objetos a serem possuídos, ou como sujeitos cujo desejo é moderado. Incumbe às mulheres resolver as tensões da sexualidade: espera-se que elas tentem estabilizar e regular o desejo dos homens, contendo-os dentro de uma relação amorosa ou dentro de um casal (BOZON, 2004-a, p. 94).
Esta coexistência de valores resulta de um processo demorado que tenta reverter
conceitos consolidados há mais de um século19. Contribui também para esta ambivalência a distância ainda presente entre o que diz a educação sexual e o que a escola produz, fala e pratica. Definida como o local mais adequado para o desenvolvimento de programa de educação sexual, a escola, em geral, “não disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo ‘a’ referência” (FELIPE e GUIZZO, 2004, p. 33). Os modos diferentes daqueles estereótipos masculino e feminino definidos como adequados desde a intervenção higienista na sociedade não têm visibilidade no espaço da escola, onde ainda predomina o investimento na produção de um determinado tipo de homem e mulher e não de outros.
O maior esforço educativo deve ser dirigido para mostrar ao jovem que o sexo não é fonte exclusiva de prazer e sim principalmente de responsabilidade. O aviltamento do homem está em transformar uma de suas mais importantes funções, que é a sexual, em apenas fonte de gozo, com o desvirtuamento completo de suas autênticas finalidades. Na verdade, o sexo, com suas conseqüências individuais e sociais, é fonte de responsabilidades. [...] Assim sendo, homem e mulher precisam considerar o sexo como fonte de responsabilidades com relação a eles mesmos, aos filhos e à sociedade (NÉRICE, 1961, p. 161).
Na década de noventa é no mesmo sentido que os pais são orientados a proporcionarem
condições para que seus filhos adolescentes possam “usufruir de uma sexualidade com afeto e responsabilidade, o que significa valorizar as relações amorosas, respeitar os parceiros e tomar as medidas para evitar uma gravidez indesejável e doenças sexualmente transmissíveis” (SOUZA e OSÓRIO, 1993, p. 99). O sexo nunca perdeu a característica de estar associado ao risco, à possibilidade de queda e a ameaças de doenças e morte, o que tornou permanente a exigência de cuidados. A responsabilidade para consigo e com o outro nunca pode ser minimizada.
Mesmo quando os textos sobre educação sexual descortinaram o prazer como uma
possibilidade e um direito, numa relativa compensação aos temas prevalentes de prevenção de gravidez e Aids, – “a grande mudança que um trabalho de orientação sexual na escola traz é poder discutir a questão do prazer” (EGYPTO, 2003, p. 18), – ainda é necessário reconhecer até onde é possível e se quer, pode e consegue ir, respeitando os limites próprios e do outro, valorizando escolhas individuais e assegurando o direito de dizer não (SAYÃO, 1995).
A educação sexual sempre pretendeu falar do sexo sobre o ponto de vista purificado e
neutro da ciência, mesmo quando incluiu o corpo erótico como indissociável do reprodutivo.
Uma ciência feita de esquivas que conduziu a abordagem do sexo pelo viés das perversões, aberrações, patologias e extravagâncias, da vinculação essencial a normas médicas e que “a pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos” (FOUCAULT, 2005-b, p. 54).
Esta ciência do sexo preocupou-se em pesquisar, ouvir, catalogar e decifrar, embaralhando as relações entre poder, prazer e verdade para administrar o sexo através de discursos úteis e normativos, mantendo-o na função de atuar na integração social, na saúde pública e na reprodução da população.
Em resumo, poderíamos dizer que o ‘normal’ em sexualidade se resume ao satisfazer-se e satisfazer sexualmente seu parceiro ou parceira, desde que isto não traga riscos ou danos a si mesmo, ao (ou à) parceiro e ao meio social. Dentro desse princípio, o que cada pessoa ou cada par faz no âmbito restrito de suas vida privadas só a eles próprios interessa, cabendo a nós, como indivíduos e como membros da sociedade, respeitar as naturais eenriquecedoras diferenças que fazem do ser humano algo de tão maravilhoso (VITIELLO, 1997, p. 48).
O conceito de comportamento normal rompeu barreiras e segundo Sayão (1995, p. 99),
“se dá prazer para os dois, se os dois se curtem, não machuca o corpo, não humilha, não extrapola os limites de cada um, não perturba ninguém, está valendo! Os dois, juntos, é que decidem o que deve ser normal para o casal”. Esta maleabilidade da educação sexual em se adaptar às novas verdades aparenta uma preocupação com o indivíduo e sua liberdade. Mas se é para o sujeito que as orientações, os conselhos e as normas apontam, é no seu corpo que elas se fixam. É “no seu adestramento,na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”, é neste corpo enquanto suporte de processos biológicos – “os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade” –, que se instalou uma tecnologia “recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2005-b, p. 131).
Estes programas vão propor uma educação sexual que promova a idéia da sexualidade
estar vinculada ao prazer, ou, como afirma Ribeiro (1990, p. 42), “contribuir para tornar a transmissão dos valores mais próxima de um padrão de comportamento voltado para o exercício de uma sexualidade sem culpa (na esfera pessoal) e sem opressão (na esfera social)”, pois, segundo este autor, investir na educação sexual é investir no crescimento global do indivíduo e aprimorar as relações humanas. Os manuais para a formação de professores educadores sexuais ressaltam a importância de fornecer aos alunos informações associadas à prevenção, a preservação da vida e da saúde e ao prazer, e não aquelas vinculadas à doença, à morte ou ao castigo.
Uma das conclusões freqüentes entre os autores é de que apenas a informação não muda
comportamentos e isto estaria evidente, segundo eles, no fato dos adolescentes engravidarem e se contaminarem, mesmo sabendo como evitar uma gravidez ou uma doença sexualmente transmissível. As mudanças comportamentais esperadas somente ocorreriam quando o adolescente integrar o conhecimento ao seu saber e ao seu cotidiano, o que seria mais factível de ocorrer através de debates sobre as dificuldades para o uso da camisinha entre os alunos do que uma palestra alertando sobre os riscos inerentes à negativa de usá-las nas relações sexuais (SUPLICY et. al, 1994).
Ellsworth (2001), ao descrever a teoria de endereçamento1, analisa a resistência dos
alunos ao conhecimento oficial, ou àquilo que estão aprendendo. Esta resistência
freqüentemente é analisada como algo que os estudantes fazem depois que eles já alcançaram a compreensão, ou seja, os estudantes “pegam” o conteúdo, mas, por questões que envolvem contextos sociais e culturais de desigualdade que incidem sobre a relação estudante/professor, se recusam a se conformar ou aceitar. Nesta perspectiva, quando o aluno resiste mesmo quando compreende o que supostamente deveria aprender, esta resistência é freqüentemente patologizada como alguma disfunção em sua capacidade de aprender ou assimilar conteúdos, resultante de problemas com suas capacidades cognitivas, grau de atenção ou motivação.
Esta interpretação equivocada ocorre, segundo Ellsworth, porque esta resistência não é analisada em termos do que acontece no espaço da diferença entre o lado de fora (o social, o currículo) e o lado de dentro (a psique individual, o estudante); porque o espaço da diferença entre o texto daquele que fala e a resposta daquele que escuta é ignorada; porque não há ajuste perfeito entre texto e leitura, modos de endereçamento e interpretações do espectador, currículo e aprendizagem, o estudante ideal ou imaginado e o real. O desenho da relação entre currículo e compreensão do estudante não pode ser o de uma estrada linear, de mão única, no
qual o currículo determina a compreensão, pois esta relação deve ser “desenhada como
constituída de oscilações, dobras e reviravoltas, voltas e retornos inesperados” (ibidem, p. 68).
A autora afirma ser impossível o ajuste perfeito entre o que um professor ou um
currículo quer e aquilo que um aluno compreende; entre o que uma instituição educacional quer e aquilo que o corpo estudantil responde; entre o que um professor ‘sabe’ e aquilo que ele ensina e entre o que o diálogo convida e aquilo que chega sem ser convidado. Além das informações não serem transmitidas para indivíduos “virgens” de conhecimentos sobre o tema, elas não serão apenas assimiladas, mas interpretadas de forma individual e misturadas a muitos outros componentes da vivência de cada aluno.
A idealização de uma escola cujo corpo docente tenha discernimento para detectar os
momentos adequados para introduzir questões sobre sexualidade, na qual o diálogo entre alunos e professores seja adequadamente aberto para proporcionar amplos debates sobre gravidez, aborto e Aids, onde a formação dos alunos permitirá a constituição de sujeitos conscientes e responsáveis, aptos a serem agentes transformadores da sociedade, tem dificuldades para se sustentar frente à realidade dos educandários brasileiros. Há vários motivos a reforçar esta dúvida sobre a capacidade da escola desenvolver programas de educação sexual dentro da metodologia proposta.
Um deles nos mostra que, enquanto o objetivo destes programas é produzir um aluno
livre e suficientemente orientado para fazer suas próprias escolhas, sua inserção ocorre no interior de práticas escolares que ainda atuam, em sua maioria, no sentido de definir o sujeito como centrado e unificado. Nas próprias propostas de programas de educação sexual, embora aqui e ali se perceba alguns breves destaques à pluralidade da adolescência, os autores adotam em geral a idéia do receituário único, onde falar é igual a falar para todos, não se detendo no entendimento de que os sujeitos / alunos são resultados de seus múltiplos relacionamentos, de seus recortes étnicos, de gênero, sociais e religiosos e produzidos no interior de
agenciamentos.
Estes discursos, entretanto, se mudaram de rumo, se excluíram o pecado, não perderam
suas características fundamentais de definir, enquadrar e rotular a sexualidade adolescente e, de algum modo, continuar a representá-la como algo que precisa ser vigiado e temido por suas possíveis transgressões. O objetivo, como escreveu Foucault (2006-c) em relação à sexualidade da criança no século XVIII, não é proibir, mas constituir, através da sexualidade adolescente, destacada como imortante e perigosa, uma rede de poder sobre a juventude. A sexualidade adolescente não é apenas objeto de análise, condenada ou tolerada, mas alvo de
intervenção e inserida num “sistema de utilidade”, regulada para o bem de todos e induzida a funcionar segundo um padrão ótimo (FOUCAULT, 2005-b).
Os manuais que orientam a implantação de programas de educação sexual nas escolas
extrapolam o objetivo de informar ou esclarecer. Os textos dos livros consultados em geral representam a sexualidade adulta como a “normal” ou o padrão a ser atingido e a adolescente como a diferente, imatura e incompleta, que precisa ser constantemente desvendada, cuidada e contida.
Neste início de século, por exemplo, pensar em educação sexual é promover estratégias para diminuir os índices de gravidez na adolescência e de contaminação
pelo vírus da Aids. Preocupações que não teriam o menor sentido na primeira metade do século XX.
Na introdução desta dissertação apresentei uma conceituação de bio-poder e, em outras passagens, a relação deste com alguns aspectos da educação sexual. Este poder sobre a vida das populações e dos indivíduos preocupa-se com o seu bem estar, com a sua saúde e segurança e, ao contrário da pregação católica, promete a boa vida e a salvação aqui na Terra. Para cumprir esta promessa, busca reforços em diversas instituições e utiliza alguns instrumentos, entre os quais o sexo é de importância fundamental.
A relevância do sexo como ferramenta para ações sociais, medidas sanitárias, controles e padronizações está reconhecida de longa data. A igreja há muito tempo, desde os primeiros séculos cristãos, percebeu a utilidade do sexo como um foco através do qual é possível atingir os indivíduos e as famílias, vinculando-o ao pecado e à necessidade de confissão. A partir do século XVIII, este tipo de influência foi assumido pelo Estado, o qual através da pedagogia (sexualidade da criança), da medicina (sexualidade das mulheres) e da demografia (regulação dos nascimentos), consolidou-se como o substituto do poder pastoral, alterando a metodologia e os objetivos, mas mantendo o foco.
Há no sexo tantas implicações cujas repercussões transitam do indivíduo até a
sociedade, que sua importância é constantemente valorizada. A relação sexual estabelece vínculos entre as pessoas, muitas vezes através de laços afetivos intensos; é a base dos índices de natalidade e da preocupação com a qualidade do pré-natal vivenciado pelas gestantes; é a fonte de doenças que se difundem com relativa facilidade, sendo algumas de acentuada morbidade e mortalidade; vincula-se a aspectos econômicos relevantes quando o sexo torna-se um produto a ser consumido. Estas implicações desencadeiam uma multiplicidade de discursos que tratam da sexualidade, sendo possível nomear entre eles os religiosos, os psicológicos, os médicos, os jurídicos e os pedagógicos, cujos objetivos aparentes são descrever e explicar, mas que na verdade nomeiam, elaboram e julgam. Trata-se de uma ampla mobilização para construir a verdade sobre o sexo, delimitar o terreno onde os
indivíduos podem transitar em relação a ele, definir as leis e as normas a serem cumpridas e estabelecer as penalidades aos infratores. Entre estes discursos, a relevância daqueles produzidos pelos médicos com o respaldo da ciência é essencial e está presente durante todo o transcorrer do século XX. Foram os médicos higienistas do começo do século que ao transformarem as características epidemiológicas da sociedade brasileira e melhorarem as condições de higiene e saúde da população, estabeleceram as bases para os conceitos de comportamentos normais, sadios e adequados em relação à sexualidade dos brasileiros. Foi também com a contribuição dos médicos que as doenças sexualmente transmissíveis foram prevenidas e tratadas de forma mais adequada, que os conceitos transitaram entre a perversidade e a normalidade da masturbação e da homossexualidade e a idade adequada para a gravidez foi adiada para após a adolescência. Fundamental para o exercício do bio-poder, a medicina contribuiu para que a sociedade, na busca de segurança e bem estar, concordasse em abdicar de parte da liberdade e da espontaneidade e de acreditar em outras verdades.
A pedagogia que produz uma normalidade que homogeneíza condutas e opiniões,
eliminando ou obscurecendo as diferenças individuais. A maioria dos textos de educação sexual, incluindo desde os mais antigos até os mais recentes, adota uma linguagem padroniz da e dirigida a um hipotético público adolescente uniforme, constituída por indivíduos brancos, de classe média, católicos e heterossexuais, desconsiderando fatores cuja influência nos comportamentos sexuais dos sujeitos, incluindo todas as suas práticas, significados e relacionamentos, são relevantes. Entre estes fatores, além da idade e das características individuais, estão os contextos sócio-econômico e cultural, os quais são preponderantes para definir como a vivência sexual vai ocorrer em cada indivíduo.
Embora os modelos a serem seguidos se modifiquem no transcorrer do século XX, eles
permanecem como base desta pedagogia que transita entre o “não deve” e o “deve fazer isto ou aquilo”, obscurecendo a visibilidade das escolhas pessoais. Esta tendência decorre de uma sistemática que tenta resistir às mudanças culturais e que se vale atualmente da escola como lugar privilegiado de saber sexual por ter esta instituição a característica ímpar de produzir uma homogeneização dos indivíduos que a família não pode proporcionar.
Esta ânsia de determinar e vigiar o normal, de estigmatizar os diferentes, de colocar a maioria dentro de padrões definidos, há muito nos confunde e atrapalha. Enquanto discutimos se somos brancos ou pretos, masculinos ou femininos, hetero ou homossexuais, não percebemos quantos indivíduos são vítimas desse discurso único ao serem focos de censura e discriminação e ao não conseguirem evitar sentimentos de culpa e vergonha. E enquanto tentarmos fazer com que os adolescentes comportem-se como os seus pais quando adolescentes, estaremos andando em círculos e ignorando que “é preciso tornar-se adulto, ou seja, capaz de inventar, de certo modo, a própria vida, e não simplesmente de viver a vida inventada pelos outros” (SAVATER, 2005-a, p. 42).
Esta relação entre educação sexual e adolescentes – ou generalizando, entre escola e
alunos –, não pode ser interpretada como uma via de sentido único cujo destino é a disciplina, a formação de indivíduos obedientes, conformados e defensores dos conceitos vigentes. Esta interpretação restritiva não vislumbra outras características destas relações que se tornam evidentes na análise dos espaços por onde emergem as dúvidas, as contestações, as práticas de liberdade e o surgimento de novos estilos de vida.
Em vez da tediosa pergunta ‘quem é você sexualmente?’, deveríamos perguntar ‘como podemos ser mais solidários entre nós?’. O que fazer para reinventar uma amizade, no sentido pleno da palavra, onde sexo deixasse de ser bicho-papão e pudesse ser só mais um ingrediente de nossas possibilidades de auto-realização? Por que, em vez de educação sexual, não começamos a pensar em novos experimentos sentimentais, amorosos, amigáveis? Quem sabe, assim, pudéssemos ver-nos livres de 200 anos de
sexualidade que só produziram intolerância, violência e perda de tempo.
Transitou por todo o século XX e permanece atual o enfrentamento entre os discursos católico e leigo, os quais falam de modo diferente das mesmas coisas. O primeiro condena o segundo por considerar que este induz à promiscuidade ao estimular o uso de preservativo. O segundo condena o primeiro por expor os adolescentes aos riscos de contaminação pelo vírus HIV e de uma gravidez indesejada ao condenar os métodos preventivos. O que se observou de deslocamento foi uma maior visibilidade aos argumentos leigos, aqueles que fazem a apologia do perigo.
Montardo
A sexualidade é, segundo Foucault, o nome que se pode dar a um dispositivo histórico, no qual "a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder” (FOUCAULT, 2005-b, p. 100).
Quando questões como saúde, higiene, alimentação, natalidade e expectativa de vida
tornam-se preocupações social e política, ocorre a atuação de políticas públicas que intervêm no conjunto da população. Constitui-se aqui o bio-poder, ou o poder sobre a vida, consolidando uma “grande medicina social que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do poder”.
Algumas palavras a respeito de dois termos que têm sido utilizados para definir o
processo de abordagem do tema sexualidade nas escolas: educação e orientação sexual.
Alguns manuais desenvolvidos por Organizações Não Governamentais (ONG) e livros mais
recentes de autores a elas vinculados adotam o termo orientação sexual, considerando-o como o mais adequado, pois este definiria um processo sistemático, planejado e desenvolvido por profissionais capacitados, ao contrário de educação sexual, que consistiria num processo informal construído ao longo de toda a vida do indivíduo com a participação de familiares, amigos, comunidade e mídia.
Entretanto, educação sexual permanece como o termo mais utilizado na maioria dos países, pela imprensa, pelo público em geral e pelas pessoas envolvidas com este tema nas escolas. Outro fator que considero desfavorável ao uso de orientação sexual é que esta é a mesma expressão utilizada para definir a identidade erótica dos indivíduos em heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Nesta dissertação adoto o termo educação sexual, por considerar que o mais adequado é utilizar os conceitos de educação formal e informal. O primeiro preenche os requisitos que estão sendo requeridos para a orientação (planejado, sistemático, organizado, efetuado por pessoas tecnicamente preparadas), enquanto que o segundo se enquadra na educação adquirida na vivência individual, nas trocas com pais, amigos, colegas
e meios de comunicação.
Em relação à adolescência, é prevalente entre pais, professores e outros profissionais a justificativa de condutas individuais como “típicas” da idade, como a “natureza” rebelde, imatura, inconseqüente ou irresponsável, conceitos que se organizam para proporcionar a construção do discurso que constitui a adolescência. Atualmente pouco se utiliza o conceito de instinto, mas a justificativa mais freqüente para o comportamento dos adolescentes é a ação hormonal, a qual além dos aspectos biológicos determinaria um amplo conjunto de comportamentos.
É o jovem masculino que precisa ser preparado para encontrar forças que lhe permitam
resistir ao “instinto copulador de macho”, no qual o coito se torna uma necessidade imperiosa e onde “o excesso de seiva que nele borbulha” exige uma solução. O
padre Negromonte (1951) justifica a atração carnal mais forte no homem como disposição da Divina Providência, pois o resultado desse comportamento agressivo e ativo seria a geração dos filhos. Segundo esse autor, se no homem a grande força sexual, a primeira que aparece, a que mais se salienta, é o desejo do prazer, na mulher este desejo é muito atenuado e vago, permanecendo quase sempre silencioso e adormecido antes do casamento
Enquanto a moça quer apenas sentir que é amada, quer o carinho de um gesto, o amparo de um braço a que se apóie, de um ombro a que se acoste, o rapaz, mesmo que procure o conforto deste amor puro, a presença desta que lhe será a companheira, nunca excluirá disso a preocupação sexual. Aquelas carícias que para as moças talvez sejam inocentes e quase diríamos infantis, que não lhes deixam senão a impressão agradável e até pura de que são amadas, estão provocando incêndios no coração do rapaz. A moça, porque “não sente nada com aquilo”, porque “aquilo não lhe faz mal nenhum”, não imagina, e nem pode mesmo imaginar o que sente o moço, o mal que faz aquilo. Ele arde, as mais das vezes, em desejos sexuais. O que para ela é uma carícia, é para ele uma provocação (NEGROMONTE, 1951, p. 152).
As frases do médico francês Daniel Alduc (1951 p. 32) - “O amor, propagador da vida,
é, também, um poderoso difundidor da morte” e “este incansável semeador é um rude
manejador de foice” – sintetiza e leva ao extremo o conceito de sexualidade como uma área de alto risco, plena de ameaças e armadilhas, que esconde graves conseqüências para aqueles que nela se aventuram sem a devida orientação. Entre os argumentos em defesa da educação sexual, antes e depois da metade do século, está a necessidade de preparar o jovem para ingressar nesse território representado como perigoso e fornecer-lhe uma espécie de mapa para o seu desbravamento.
Ainda segundo o entendimento da maioria dos autores até os anos sessenta, a preocupação quanto à vulnerabilidade era com os rapazes, pois estes seriam mais suscetíveis aos clamores do instinto, enquanto que as adolescentes não estariam incluídas nesta situação de risco por não apresentarem comportamentos nesse sentido. Apenas aos rapazes era exigido um controle sobre a atividade sexual, evitando a procura de prostitutas e o contágio com doenças venéreas, valorizando a castidade como uma atitude que enobrece o indivíduo.
Nesse período, as jovens recebiam orientações sobre menstruação, cuidados higiênicos e postura social, conduzindo-as para o futuro papel de esposas e mães. Não havia preocupações quanto à possibilidade de atividade sexual, algo considerado improvável para uma moça solteira. Delas não era exigido o combate ao próprio instinto sexual, mas precisavam enfrentar o dos namorados e noivos e para isso eram orientadas a não cederem às pressões destes, que muitas vezes exigiam prova de amor ou ameaçavam com a ruptura da relação.
Apenas nos livros publicados na década de oitenta é que a atividade sexual das jovens começa a ser reconhecida e o “sexo fora do casamento só não escandaliza mais as ‘boas’ famílias quando é banalizado nas novelas de televisão” (COLLING, 1997, p. 42). A partir de então a gravidez na adolescência torna-se um problema a ser prevenido e motivo de preocupação para os profissionais da saúde, educadores, pais e sociedade em geral.
A partir dos anos setenta, com o uso de novos antibióticos, cuja eficácia e acessibilidade – por receita médica ou livre acesso nas farmácias – evoluíram rapidamente, a incidência e a gravidade das doenças venéreas diminuíram significativamente e com isso a preocupação com a sua disseminação. Mas esta situação não durou por muito tempo. No início dos anos oitenta a Aids surgiu como ameaça à vida, inicialmente para os então denominados “grupos de risco” e a seguir para toda a população. E as doenças venéreas ressurgiram (agora com outro nome:
doenças sexualmente transmissíveis) como o grande perigo a ameaçar os jovens em suas
experiências sexuais.
Novos tempos, novos perigos. Considerando-se os desajustes e as anomalias comportamentais, a possibilidade de contaminação pelas doenças venéreas, a epidemia da Aids e a possibilidade de uma gravidez considerada como precoce, percebe-se que o sexo nunca deixou de ter a seu lado “más companhias”.
O estímulo a falar de sexo foi o que construiu o discurso e a verdade sobre o sexo. Os manuais médicos sobre atendimento ao adolescente recomendam que durante a entrevista individual o paciente seja questionado sobre namoro, envolvimento físico, preferências sobre práticas sexuais, número de parceiros, conhecimento e/ou uso de métodos anticoncepcionais e doenças sexualmente transmissíveis, conduta compatível com o discurso generalizado de que ao chegar à adolescência o sexo torna-se algo intenso, forte, inevitável, que precisa de ajustes, controle e supervisão.
A preocupação, aprendida nos manuais médicos e assumida como correta e adequada,
de investigar sobre sexo, fazer perguntas, desvendar os segredos, nos trouxe não a resposta esperada de desvelamento do “mundo sexual dos adolescentes”, mas um questionamento de que talvez sejamos nós adultos, enquanto pais, professores e profissionais, que estamos mais preocupados do que os próprios jovens e produzindo um contexto de “importância do sexo”.
E nessa prática de estimular a falar de sexo, estamos dando continuidade ao processo de construção dos discursos e da verdade sobre o sexo.
Cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos (FOUCAULT, 2005-b, p. 27).
Além dos temas relacionados nos tópicos anteriores, há outras justificativas para a
educação sexual: a) o risco de receber orientações inadequadas – “Os colegas sempre são maus mestres neste assunto” (NEGROMONTE, 1951, p. 76) e “o silêncio precipitará os filhos nas mãos dos corruptores” (ibidem, p. 19); b) as influências negativas dos “perigosos contatos com o cinema, as revistas ilustradas, os cartazes, as conversas levianas de casa, a semi-nudez das praias e piscinas” (ibidem, p. 91), das leituras pornográficas (NÉRICE, 1961) e dos meios de comunicação que usam e abusam da sensualidade como técnica de marketing (VITIELO, 1997); c) a precocidade do envolvimento com as questões sexuais desencadeada pelo meio social, fazendo com que “a inquietação sexual, que só deveia chegar com a puberdade” se antecipe e faça “dos nossos meninos uns precoces sexuais” (NEGROMONTE, 1951, p. 91);
d) os perigos que o segredo pode representar ao gerar curiosidade, insatisfação e
intranqüilidade, pois a idéia de que a inocência protege é falsa e a ignorância freqüentemente gera angústia, culpa e gravidez indesejada (SUPLICY et al, 2000).
São justificativas que caracterizam o adolescente como despreparado nesta área, sendo o seu desconhecimento uma realidade que “é triste e desoladora entre nós, [...] levando o adolescente a percorrer caminhos penosos, quando em seu lugar poderia ter gratas alegrias e uma vida mais sadia” (COSTA, 1986, p. 7). Vitielo (1997, p. 63) ressalta ser chocante o nível de desinformação exibido por adolescentes numa sociedade como a nossa que tanto preza e valoriza o fato de estar bem informado, o que leva a sexualidade a ser exercida, em todas as camadas sociais, sem qualquer preparo formal ou informal, “iniciando-se habitualmente na
hora errada, com a pessoa errada e pelos motivos errados”. Percebe-se nesta construção de uma imagem de incompletude como característica da sexualidade adolescente a justificativa para a necessidade de fornecimento das devidas
informações, pois sem elas, conforme Suplicy (2000), o indivíduo poderá ver comprometida as suas possibilidades de ter uma vida sexual harmoniosa e ser conduzido a uma vida sexual e afetiva infeliz e empobrecida. Outra opinião que segue o mesmo argumento é o de Egypto (2003), ao afirmar que a ignorância não protege ninguém de nada, ao contrário, torna o jovem mais vulnerável às situações por não saber lidar adequadamente com elas ou por não dar conta dos medos, das ansiedades, das dúvidas e dos questionamentos que vão se desenvolvendo ao longo da vida. Em relação a esta preocupação com os perigos da desinformação, percebe-se
que mesmo quando associamos o final do século com novos tempos, os discursos
permanecem velhos.
Aparentemente não, pois os dados a respeito “da alta incidência de gravidez precoce, do elevado número de mortes ou seqüelas em mulheres provocadas por
aborto clandestino, do crescente número de recém-nascidos infectados pelo vírus HIV”5 são indicadores do “analfabetismo da sexualidade da adolescência contemporânea” (BOARINI, 2004, p. 188-9).
Conclui-se que a educação sexual, segundo esses autores, é necessária porque o
adolescente precisa ter acesso às informações adequadas e de alguém que lhe mostre o
caminho, que lhe diga como agir, o que fazer e o que evitar, caso contrário ele será
incompetente sexualmente, talvez não seja feliz, não fará o outro(a) feliz, além de estar correndo graves riscos quanto à sua integridade física. Inserido nesta linha de pensamento está o conceito do acesso à informação repassada pelos adultos como condição indispensável para que os jovens tenham aptidão para tomarem decisões com responsabilidade.
Ainda nesta mesma linha de argumentação, eles precisariam, portanto, de um
passaporte, um salvo-conduto que lhes permita, futuramente, ingressar no mundo da
sexualidade adulta, mundo no qual, finalmente, seus integrantes estariam em condições privilegiadas de controlar os instintos, tomar decisões, desviar-se das situações de risco e estar consolidado na prática da virtude.
Estado, igreja, medicina, justiça e educação atuam na família no sentido de interferir nas suas ações, designar os papéis de seus integrantes, definir quais normas ela deve seguir, quantos indivíduos deve conter, qual tipo de vestuário deve usar, o que deve consumir, em quantos e quais cômodos deve viver e como e com quem deve se relacionar. Esta atuação das instituições sobre a família é perceptível do casamento à separação, do nascimento dos filhos ao óbito de seus integrantes, da aquisição à venda de bens, da renda familiar às despesas efetuadas, sendo constante a exigência de que tudo seja documentado, registrado em cartório, assinado com testemunhas e comprovado com recibos.
A parte mais substancial do investimento no dispositivo da sexualidade aplicado pela
igreja, pelo Estado e por outras instâncias, como a mídia e a propaganda, foi aplicada na família. É no seu interior e nas relações entre seus integrantes que se ergueram as regras mais elaboradas e as interdições mais sólidas a respeito do sexo. É onde também se detectaram os maiores problemas, os desvios mais sérios e a necessidade de intervenções terapêuticas mais amplas.
É ainda a família o eixo que liga os dispositivos da aliança e da sexualidade. Enquanto o da aliança está relacionado ao matrimônio, à reprodução, ao parentesco, à transmissão de nomes e bens e estrutura-se em regras para manter a homeostase social, o da sexualidade, apesar de também se articular entre parceiros sexuais, está vinculado ao prazer e à economia do corpo que produz e consome (FOUCAULT, 2005-b). Através do corpo feminino, da sexualidade infantil, do controle da natalidade e dos comportamentos perversos, os discursos articularam estes dispositivos através da família, os quais se materializaram na mulher nervosa, frígida e indiferente, no marido impotente ou perverso, na criança precoce e no
jovem homossexual.
Desde a consolidação, no final do século XIX e início do XX, da família brasileira
como local de investigação, de controle e de permanente vigilância a respeito da sexualidade infantil e adolescente, dos quais devia exigir as confissões mais íntimas e a temer suas manifestações sexuais, algumas mudanças ocorreram.
Mas se estas mudanças resultam do fato de alguns valores, costumes e normas não serem mais os mesmos, não significaram a perda da vigilância sobre a família nem o fim da necessidade de intervenção. Agora os medos deixaram de ter origem nas crianças e nos adolescentes do sexo masculino, e se deslocaram para a gravidez considerada precoce da adolescente e o desejo sexual dos pais e o que estes “gostam
de fazer com (e a) seus filhos”, os quais passam a ser considerados principalmente objetos sexuais e vítimas potenciais de seus pais como sujeitos sexuais.
gravidez na adolescência e o abuso sexual, temas vinculados a políticas públicas, assumiram uma visibilidade antes nunca experimentada, desencadeando campanhas na mídia, programas preventivos e medidas punitivas.
Atualmente, na opinião de muitos, o seu lugar é o de coadjuvante, e na de outros, situa-se no limbo entre a omissão, a incompetência e a situação de risco. Considerada há muito tempo como o local ideal para a intervenção de ações religiosas, médicas, políticas e econômicas, a família não poderia deixar de ser envolvida na formação sexual de seus filhos, e, mesmo quando a escola é convocada para assumir essa função, ela não deixa de participar, seja como produtora, permissionária ou, mais recentemente, como estorvo.
Na família, o enfoque sobre sexo tende a tomar formas indiretas, pouco claras, envolvidas em subterfúgios, reticências, segredos, as quais nem sempre se caracterizam como diálogos entre pais e filhos (BRANDÃO, 2004). A desigualdade hierárquica, o envolvimento afetivo, o tipo de relacionamento conjugal e parental, são fatores que determinam uma especificidade à educação sexual familiar que a torna única e insubstituível, pois ela estará ocorrendo sempre, mesmo que não utilize palavras ou prescrições.
A partir dos anos 80, os discursos favoráveis a consolidação da escola como local para a educação sexual e à necessidade de formação de professores para desenvolverem programas nesta área deslocam a família para um papel secundário. Neste sentido, ocorreu a descaracterização da competência dos pais como educadores sexuais e a família não apenas perdeu a autonomia sobre a sexualidade de seus filhos, como foi responsabilizada por enviar às escolas alunos desinformados e com atitudes negativas em relação ao sexo. Neste cenário, a escola é incumbida da função de reverter um quadro considerado tenebroso, no qual os alunos são recebidos com uma forte carga de tabus, preconceitos, conflitos, sentimentos de culpa e dúvidas:
Parece-nos claro que a melhor educação seria a que fosse propiciada pelos próprios pais, pois nenhuma estrutura social consegue atuar tão precocemente, com adultos tão significativos, por tanto tempo e de forma tão importante sobre o ser humano em sua fase de formação de personalidade, como a família. No entanto, como regra geral, os pais têm notória dificuldade em falar de sexo com os seus filhos. [...] São dificuldades de cunho cultural, que somente serão superadas com muito esforço pessoal e grandes lutas internas pois nós, adultos, somos filhos de nosso meio e de
nossa época, sendo ao mesmo tempo agentes e vítimas dos preconceitos vigentes. Assim sendo, pelas dificuldades enfrentadas pelos pais, somos obrigados a nos valer do ensino formal, que nos parece ser, a médio e longo prazo, a solução mais viável no momento histórico que nossa sociedade está vivendo (VITIELLO, 1997, p. 101-2)
Além da alegada incompetência dos pais, surgiram outros argumentos em detrimento da
família. Um deles é defendido por Suplicy (2000, p. 33) ao caracterizar a adolescência como problema e durante a qual “normalmente a família se constitui num lugar de tensão e conflito”, dificultando a abordagem de certos assuntos pelos pais, os quais poderiam ser discutidos na escola com mais liberdade.
A família foi, com o evoluir das décadas do século XX, de certo modo deslocada em
relação à função de educadora sexual e, além de ceder esta função para a escola e assumir sua condição de incapacidade e de produtora de tabus e insegurança, passou à condição de suspeita. Estes e outros discursos conduziram os pais a se convencerem de sua incapacidade e da necessidade de terceirizarem a educação sexual de seus filhos, levando-os a confirmarem nas pesquisas que sim, preferem que a escola assuma essa função. E, de certa forma, a desconsiderarem que em sua convivência diária são responsáveis por alguns aspectos da educação sexual:
A educação sexual informal que se realiza no âmbito da família tem importância particular sobre o desenvolvimento da criança e a formação de grande parte de suas idéias sobre família, amor e sexualidade, dependendo da organização e estrutura da família, pelas suas condições de vida, pelas dinâmicas de relacionamentos entre seus membros e pelas características individuais de pais e filhos.
Os pais desempenham o papel de educadores do domínio da sexualidade, muitas vezes inconscientemente, educando mais pelo que fazem do que pelo que dizem. São modelos de homens e mulheres, marido e mulher e como pessoas sociais, que ensinam o que cada um destes papéis representa, incluindo os conceitos de masculinidade e feminilidade, construindo ou reforçando estereótipos (WEREBE, 1998, p. 148).
Exige-se hoje da escola não apenas a produção, a transmissão e a aquisição de conhecimento, mas a solução de inúmeros problemas relacionados a questões tão diversificadas como saúde e higiene, prevenção do uso de drogas, preservação do meio ambiente, disciplina e comportamento, as quais antes eram assumidas pelas famílias.
Há uma outra forma que, embora explícita, também não é reconhecida. Ela se dá nos
interstícios da escola e dos relacionamentos, deixando seus rastros nos corredores, nos pátios de recreios ou nos locais de atividades físicas. Suas marcas mais visíveis ficam nas classes rabiscadas, nas portas e paredes dos banheiros, nos bilhetes trocados e nas agendas compartilhadas. E as mais sutis, mas também duradouras, se instalam nos corpos e nas mentes daqueles que se empurram, se tocam e se abraçam. A única maneira em que as questões sexuais são formalmente admitidas na escola, recebidas com solenidade na porta da frente e divulgadas como investimento no bem estar dos alunos é quando ela convida um profissional para proferir uma palestra ou quando assume um programa de educação sexual.
Em seu cotidiano, a escola finge que ignora o sexo e diz que, no seu interior, sobre ele não se fala. E quando ele aparece e assinala sua presença de forma que não possa ser ignorado, é considerado como um intruso cuja responsabilidade é das famílias “desestruturadas”, que não souberam contê-lo em seus filhos, ou de uma sociedade e uma mídia que o banalizam e estimulam comportamentos inadequados. A escola não se reconhece como produtora de atitudes sexuais, mas apenas como responsável por corrigir os comportamentos considerados desviantes e de risco que seus alunos trazem para dentro de seus muros.
A escola é, portanto, um espaço sexualizado, onde alunos e professores vivenciam
experiências, definem conceitos de normalidade, determinam as diferenças e estabelecem verdades sobre sexo, gênero e relacionamentos.
Autores como Ribeiro (1990), Sayão (1997) e Reis e Ribeiro (2004) relatam a história dos programas pioneiros em educação sexual em diversas escolas de algumas capitais brasileiras até os anos sessenta, tendo o Colégio Batista, no Rio de Janeiro sido o primeiro a incluir em seu currículo o ensino da evolução das espécies e da educação sexual em 1930, embora posteriormente o professor responsável pela iniciativa tenha sido processado e demitido.
O padre Negromonte (1951, p. 76) condenou a abordagem de temas sexuais de forma coletiva, consideradas como contraproducente por colocar em circulação entre os alunos “um assunto de que seria conveniente eles nunca falarem entre si”.
Havia uma concessão em relação ao ensino coletivo: as escolas católicas poderiam
abordar questões sexuais, pois eram as únicas capazes de desempenharem esta função, ao contrário dos ginásios e escolas não religiosos, “onde meninos e meninas, rapazes e moças brincam encurralados, numa promiscuidade sem par, [...] não são portas escancaradas à perdição?” (ALMEIDA, 1946, p. 27). Esta concessão era viável porque nas escolas católicas existia a possibilidade de por em ação o discurso religioso sobre sexualidade, no qual se louvava a castidade e defendia a reprodução como única finalidade do ato sexual.
A partir da década de oitenta outros fatores reforçaram a posição da escola na educação sexual: o surgimento da epidemia de Aids e a preocupação com os índices de gravidez na adolescência. Estas questões foram importantes para legitimar a educação sexual na escola e justificar os discursos em sua defesa, os quais receberam a conotação científica necessária para superar as opiniões em contrário. Simultaneamente, a família foi definida como uma instituição incompetente para proporcionar informações adequadas, reforçando a sua condição de ambiente produtor de tabus, preconceitos, medos e insegurança quanto à sexualidade de seus filhos.
É nessa linha de argumentação que no livro “Sexo se aprende na Escola” (SUPLICY et
al., 2000), os autores defendem ser função do Estado propiciar à sociedade informação e orientação sobre sexualidade, bem como o acesso aos meios de anticoncepção, além de definir alguns objetivos da educação sexual na escola: a) reverter a freqüente situação de infelicidade na vida sexual e afetiva das pessoas, pois a falta de informações deixa o aluno enredado em medos e preconceitos; b) proporcionar o bem-estar sexual, ajudar na formação da identidade, abrir canais de comunicação e ajudar a repensar valores; c) desenvolver o potencial de felicidade a que os alunos têm direito.
E os argumentos em defesa da escola se multiplicam. No mesmo livro acima citado, os
autores afirmam que a escola não pode fugir à responsabilidade, pois além de transmitir a noção de que o assunto é um tabu, sobre o qual não se pode falar, perpetuando a vivência de uma sexualidade empobrecida, estaria sendo omissa em relação à influência da mídia e às ameaças representadas pela Aids, pela gravidez indesejada e pela violência sexual dentro e fora de casa. E acrescentam ser função da escola contribuir para uma visão positiva da sexualidade como fonte de prazer e realização do ser humano e que na ausência de um espaço para discussão, esta “se transforma em fonte de agressão, balbúrdia e exibicionismo”.
Os defensores da escola também se utilizam de uma descrição idealizada da realidade escolar em seus argumentos, descrevendo-a como um ambiente no qual o aluno pode “desenvolver o pensamento e a capacidade crítica, no sentido de não aceitar nem rejeitar valores sem antes analisá-los” (SUPLICY et. al., 2000, p. 13) e onde a educação sexual pode ser abordada com “ampla liberdade de expressão, num ambiente
acolhedor e num clima de respeito” (ibidem, p. 8-9).
Se a igreja ignora que a família pode ser uma situação problemática e conflituosa, também em relação à escola fica obscurecida uma realidade que não se caracteriza por ser relativista, estimulante e afável.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados pelo Ministério da Educação
e Desporto em 1997, têm, entre outros, os objetivos de constituir-se numa ferramenta
disponibilizada aos professores brasileiros para ser utilizada no sentido de promover uma reflexão sobre os currículos escolares e como um referencial para a renovação e reelaboração da proposta curricular, além de apontar metas de qualidade que ajudem o aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão participativo, reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres (BRASIL, 1997). Constituído por dez volumes distribuídos às escolas, os PCNs contêm um documento introdutório, seis documentos referentes às áreas de conhecimento (língua portuguesa, matemática, ciências naturais, história, geografia, arte e educação física) e seis documentos referentes aos Temas Transversais (ética, meio ambiente, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e trabalho e consumo).
Os Temas Transversais procuram, segundo o texto introdutório dos PCNs, traduzir as
preocupações da sociedade brasileira e correspondem à questões importantes, urgentes e presentes sob várias formas na vida cotidiana. Propõem, também, um desafio às escolas para que estas promovam um debate sobre estes temas introduzindo-os nas áreas já existentes nas atividades educativas da escola, sem criar novas disciplinas, organizando o trabalho didático na forma de transversalidade.
Os PCNs foram definidos como uma proposta às escolas brasileiras, não se tratando de uma normativa a ser obrigatoriamente adotada e sim como um material aberto e flexível a adaptações regionais que pode ou não ser utilizado, preservando a autonomia de professores e equipes pedagógicas.
Os PCNs consideram como objetivos gerais dos programas de educação sexual para o
ensino fundamental proporcionar ao aluno condições de, entre outras habilidades, respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos à sexualidade; compreender a busca de prazer como uma dimensão saudável da sexualidade humana; conhecer seu corpo e valorizar e cuidar de sua saúde; reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores; conhecer e adotar práticas de sexo protegido; ao iniciar relacionamento sexual evitar contrair ou transmitir doenças sexualmente
transmissíveis, inclusive o vírus da Aids; desenvolver consciência crítica e tomar decisões responsáveis a respeito de sua sexualidade e procurar orientação para a adoção de métodos contraceptivos (BRASIL, 1997)8.
As viradas para os séculos XX e XXI não alterou a necessidade de corrigir os problemas familiares e os especialistas permanecem empenhados em estabelecer medidas de controle, interpretar os problemas das famílias consideradas como desestruturadas, normatizar o sexo e prescrever exercícios. Os especialistas contemporâneos permanecem fortemente vinculados ao cienticifismo e, segundo Costa (1979, p. 16), ao repetirem os mesmos discursos dos higienistas, promovem “maior disciplina, maior vigilância e maior repressão”. As ONGs e os especialistas assumiram a função dos higienistas.
É impreciso o limite entre o que a educação sexual, através de seus discursos, contribui para construir, como o conceito de gravidez precoce, e o que ela primeiro precisa entender e assimilar, para só então incluir em seus textos, como é o caso do comportamento relacional entre adolescentes contemporâneos denominado ficar. Mas mesmo que estejam ora produzindo cenários no qual organiza a condução de seus atores, ora atuando no entorno destes cenários e atores, os discursos sobre educação sexual não se diferenciam dos demais ao não se tratarem simplesmente de descrições dos atos, mas da incessante produção dos roteiros.
Schwartz (1974, p. 145) reconhecia que não era verdade ter o fluxo menstrual um
caráter venenoso como lhe foi atribuído durante séculos, mas afirmava que a “mucosidade nele contida parece possuir, às vezes, qualidades irritantes e capazes de fazer mal”. Segundo este autor, a menstruação poderia estar ainda relacionada às doenças venéreas: “Numerosos fatos parecem comprovar, realmente, que a secreção de pus pela uretra do homem pode provir do contato com o fluxo menstrual”. Esta associação entre menstruação e os mais diversos problemas estão vinculadas a muitos outros discursos produzidos pelos homens que tinham como objetivo desqualificar a mulher e ressaltar a diferença entre os sexos, em que os atributos femininos ocuparam o lugar negativo, inferior e produtor de doenças.
É neste contexto idealizado como universal e a-histórico que o adolescente é concebido por um discurso que diz compreender sua essência e ser portador de alternativas para corrigir os seus problemas. E é neste mesmo contexto que o adolescente é objeto de uma educação sexual cuja utilidade é inseri-lo numa sexualidade adulta e responsável, livre dos riscos considerados típicos desta fase da vida ainda em construção. Do início ao fim do século, e talvez durante os próximos, os discursos sobre educação sexual não se afastarão do princípio de falar com um adolescente único.
Um texto do papa João Paulo II intitulado “Carta às Famílias” e divulgado em 1994
reafirma a posição da igreja no sentido de que a educação sexual deve estimular a disciplina de guardar-se sexualmente para a pessoa amada.
A educação sexual, direito e dever fundamental dos pais, deve fazer-se sempre sob a sua solícita guia, quer em casa quer nos centros educativos escolhidos... Neste contexto é absolutamente irrenunciável a "educação para a castidade" como virtude que desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar e promover o 'significado nupcial' do corpo.
Por isso a Igreja opõe-se firmemente a uma certa forma de informação sexual, desligada dos princípios morais, tão difundida, que não é senão a introdução à experiência do prazer e um estímulo que leva à perda – ainda nos anos da infância – da serenidade, abrindo as portas ao vício.
O conhecimento deve conduzir a educação para o autocontrole: daqui a absoluta necessidade da castidade e da permanente educação para ela. Segundo a visão cristã, ela significa antes a energia espiritual que sabe defender o amor dos perigos do egoísmo e da agressividade e sabe voltá-lopara a sua plena realização. O resto é incitar o sexo fora de hora e fora de lugar.
A interpretação atual do tema castidade começou a se constituir nos livros publicados a partir da década de oitenta. Autores – como médicos e psicólogos – escrevem para os leitores adolescentes que a castidade não é uma imposição e sim uma opção para ambos os sexos. O psiquiatra Costa (1986), num dos capítulos de seu livro intitulado “Virgindade: necessária ou obsoleta?”, aconselha que a decisão dos adolescentes (masculinos e femininos) sobre a conservação ou não da virgindade deve ser uma opção definida por escolha pessoal e não partir de um condicionamento, preconceitos ou pressão familiar e social. E a psicóloga Sayão (1995, p. 19) afirma aos seus leitores que “sexo é bom, é gostoso, é natural, dá prazer” e que há muitas maneiras de contato sexual - “tem o tradicional papaimamãe, tem sexo oral, tem sexo anal, tem 69, tem tantas coisas!” (ibidem, p. 61) -, ressaltando que o mais importante é aquilo que cada um está a fim de curtir, reconhecendo o que deseja, pode e consegue fazer, desde que respeite seus limites e os de seu par. A autora
desvincula o ato sexual do amor e sugere aos adolescentes desfrutar do sexo o que ele pode dar de positivo, não transformando ou permitindo que transformem uma “coisa tão legal em algo assustador, aterrorizante” (ibidem, p. 125).
Durante muito tempo a virgindade feminina necessitou de proteção e vigilância.
Somente a partir da segunda metade do século XX, quando os métodos contraceptivos mais eficazes e de acesso mais fácil romperam o vínculo secular entre o ato sexual e a reprodução, que a interdição do ato sexual antes do casamento deixou de prevalecer para ambos os sexos.
É verdade que ainda permanece certo limite quanto ao número de parceiros com os quais a adolescente se relaciona, capaz de ser o fator divisor entre o comportamento socialmente aceitável e o que ainda é considerado promiscuidade, mas os textos leigos a partir dos anos 80 sobre educação sexual não ignoram que manter atividade sexual antes do casamento não é mais prerrogativa dos rapazes.
Atualmente os livros sobre educação sexual trazem propostas de debates sobre um
conceito (virgindade), uma escolha (ser ou não virgem) e um momento simbólico: a primeira vez. Em suas páginas é possível constatar o grande investimento sobre este marco na vida do indivíduo através de orientações que se constituem em algo semelhante a um manual de instruções: o que fazer, não fazer e como fazer, quais são os medos e as dúvidas, o acontecimento ou não de sangramento e dor, quais as posições e o local adequados.
Os argumentos utilizados para condenar a masturbação se basearam em associações
com eventos normais da puberdade (como o crescimento de pelos nas mãos e o surgimento de espinhas), com doenças (como a cegueira e a loucura) e em argumentos biológicos como o consumo de espermatozóides (que iriam faltar mais adiante). Estas associações oportunistas, falsas e ameaçadoras desencadearam nos pais a necessidade de vigiar e investigar e, nos jovens, a angústia da culpa e a necessidade da confissão.
O ato masturbatório não teria se constituído da importância que lhe foi devida se, como tantos outros hábitos humanos, não tivesse proporcionado a possibilidade da indução da vigilância permanente e com ela a penetração no íntimo das famílias e dos indivíduos, estratégia tão cara aos sistemas de poder. Tratou-se na verdade não de combater, evitar ou condenar, mas de estimular e valorizar como algo íntimo, um segredo, algo que exige da consciência um constante envolvimento e atenção em relação ao corpo e uma permanente necessidade de confessar seus excessos.
A abordagem do tema homossexualidade nos livros de educação sexual é um dos
exemplos da transitoriedade não apenas dos discursos, mas das verdades científicas. Durante o transcorrer do século XX é possível observar os deslocamentos discursivos que conduziram a homossexualidade da condição de perversão ao reconhecimento de que se trata de uma das maneiras do indivíduo vivenciar sua sexualidade, tendo transitado também pela categoria de doença.
Os primeiros livros sobre educação sexual abordavam o tema homossexualidade (na
época ainda denominada de homossexualismo) com o intuito de destacar o seu caráter de anormalidade e de chamar a atenção para o fato de que ela poderia se manifestar
eventualmente em qualquer indivíduo que não tomasse certos cuidados, seja em conseqüência de problemas de saúde, seja por comportamentos inadequados. A vigilância tanto dos pais como dos próprios adolescentes era necessária para preservar a heterossexualidade.
A opinião da igreja, entretanto, não acompanhou esta trajetória de absolvição.
Apoiando-se na Sagrada Escritura, os textos católicos ainda incluem a homossexualidade na categoria de depravação grave e contrária à lei natural ao fechar o ato sexual ao dom da vida.
Este comportamento considerado anormal e oposto à lei de Deus é, segundo os autores
católicos, devido a desequilíbrios que se desenvolvem na criança ou no jovem por problemas familiares – separações, brigas dos pais, mãe dominante, pai fraco, obsessão da mãe pelo filho, desinteresse e grosseria do pai, forte insegurança, experiência sexual fracassada ou traumática na adolescência ou educação sexual mal conduzida. – (AQUINO, 1996).
Considerando este conjunto de fatores desencadeantes, a igreja defende que a prevenção é a melhor terapia.
Um dos caminhos adotados no trajeto cujo destino era a absolvição da homossexualidade como desvio ou anormalidade foi o do reconhecimento do direito da opção individual. Caminho que não obteve sustentação por muito tempo devido à conclusão de que a homossexualidade ou a heterossexualidade não são objetos de escolha pessoal, de que não há um momento na vida do indivíduo no qual ele possa escolher entre as duas alternativas e de que provavelmente poucos homossexuais, se essa opção lhes fosse proporcionada, teriam escolhido o caminho da exclusão, discriminação e vitimização que lhes é imposta.
Esta trajetória para liberar a homossexualidade do estigma de anormalidade lembra
uma outra que há muito já atingiu seu objetivo: a questão da lateralidade. Aproximadamente dentro dos mesmos índices reconhecidos de indivíduos homossexuais (cerca de 10% da população), os canhotos foram durante muito tempo discriminados, corrigidos – inclusive com o uso de violência – e classificados de anormais. Atualmente o fato de escrever com a mão esquerda pode até chamar a atenção de algumas pessoas, mas está distante dos rótulos pejorativos e não se cogita em corrigir a criança com esta característica. Por algum motivo, que não cabe aqui desvendar, a necessidade de repressão aos canhotos deixou de ser interessante.
O reconhecimento de que existem diversas formas de relacionamentos amorosos, sem
que nenhum deles esteja no centro ou na periferia da normalidade consolidou-se nos livros sobre educação sexual do final do século XX. O discurso considerado politicamente correto que condena qualquer tipo de discriminação e defende o respeito pelas diferenças torna-se preponderante e os autores adotam a defesa da diversidade, desvelando mais uma vez a mobilidade dos marcadores que definem as fronteiras entre o normal e o desviante.
Ou seja, na conversa informal entre iguais o gay continua um desviante, motivo de
piada e ironia, mas durante uma atividade coletiva formal são raros aqueles que ainda defendem uma postura condenatória.
A constituição do normal sempre precisou não apenas de constante vigilância, mas da condenação do que nele não se enquadra, tendo sido a homossexualidade o objeto necessário de rejeição para permitir a produção da heterossexualidade. Mesmo quando
ocorreu o deslocamento da perversão para a doença, o indivíduo homossexual permaneceu estigmatizado. Segundo Badinter (1993, p. 106), “uma vez que a nossa concepção de masculinidade é heterossexual, a homossexualidade desempenha o útil papel de contraste, e sua imagem negativa reforça a contrário o aspecto positivo e desejável da heterossexualidade” (grifo da autora).
Discursos que, ao tomarem todos os lugares, destituíram de muitas
adolescentes o direito de vivenciarem a gravidez e a maternidade como algo positivo e desejável.
No último quarto do século diversos deslocamentos sócio-culturais, como o uso da
pílula anticoncepcional, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a afirmação dos direitos femininos, as alterações nos critérios sobre índices de natalidade adequados, ente outros, conduziram a mudanças significativas nos conceitos sobre a idade apropriada para o casamento e a gravidez, o número de filhos e os papéis de marido e esposa. Instituiu-se a partir de então o consenso de que uma gravidez deveria ser postergada para um período no qual a mulher já estivesse com seus estudos concluídos e inserida no mercado de trabalho.
A partir deste novo contexto, os argumentos contrários à gestação na adolescência
foram sendo construídos e divulgados, contando com o apoio essencial de considerações médicas sobre o assunto, o que contribuiu para torná-la semelhante a uma enfermidade a ser evitada e controlada em termos epidemiológicos. Os meios de comunicação abordam este tema com freqüência, geralmente adotando o discurso alarmista da precocidade, dos riscos, da irresponsabilidade, das conseqüências danosas e da necessidade da prevenção, reforçando o senso comum destas gestações como problemas a serem evitados. Foi dentro deste contexto que a gravidez adolescente teve seu perfil alterado e foi incluída no rol da ilegitimidade, da
irresponsabilidade, do mal a ser incessantemente combatido.
É necessário ressaltar que durante as décadas iniciais do século XX a mulher entre 15 e 18 anos era considerada como adulta e apta a estabelecer vínculos conjugais e maternais, evidenciando a mobilidade dos limites etários da adolescência conforme a época.
O contexto do final do século XX conduziu a educação sexual no sentido de adotar seus maiores e mais contundentes investimentos na prevenção da gravidez na adolescência.
Compatibilizando uma liberdade sexual, na qual todos os adolescentes têm o direito de, se esta for a vontade, ter uma vida sexual ativa, com a inadequação de uma gravidez não planejada e não inserida num relacionamento conjugal, a educação sexual proporcionou uma contribuição efetiva para a construção de um discurso incisivo de condenação da gravidez na adolescência. Neste tema, como em outros incluídos na educação sexual, os discursos adotam o critério do conceito único, válido para todos, de todas as idades e contextos sócioeconômicos.
A regra geral e que deve ser adotada por todos é evitar a gravidez.
Entretanto, diversas pesquisas têm demonstrado que em um número significativo de adolescentes, longe de significar um problema, a gravidez está inserida dentro de um projeto de vida no qual a convivência conjugal e a maternidade são fatores importantes. Nestas situações, a gravidez, independentemente da idade materna, está longe de representar uma crise, pois se situa dentro de um contexto de normalidade, considerando-se este conceito como algo previsível, esperado, desejado e não causador de conflitos. Os dados destas pesquisas mostram um perfil da gravidez na adolescência diferente do conceito de gestação imprevista, indesejada ou conflituosa, e sugerem que muitas adolescentes das classes populares mantêm um
comportamento semelhante aos das mulheres de gerações anteriores em relação à idade
adequada para assumirem a maternidade e o matrimônio.
O discurso único da educação sexual sobre a gravidez na adolescência, ao promover a
conscientização dos adolescentes para que adiem uma gravidez para mais tarde, traz consigo o efeito colateral de conduzir à discriminação e à condenação social àquelas adolescentes que, juntamente com seus companheiros, gostariam de vivenciar com alegria e felicidade a sua gestação.
Condenação que pode ser um dos principais motivos do elevado índice de abandono
escolar das adolescentes grávidas, ao lado de fatores como baixo rendimento escolar e várias repetências. Ao adotar o argumento da inadequação, poucas escolas conseguem sustentar em sala de aula uma aluna que, voluntária ou involuntariamente engravidou.
Outro aspecto que se associa à justificativa de prevenir a gravidez não planejada em
adolescentes, nesta educação sexual que adota o discurso amplamente condenatório, é a substituição do impedimento da relação sexual antes do casamento imposto às jovens. Se antes a adolescente não podia ter atividade sexual, hoje ela não pode engravidar, mesmo quando mantém um relacionamento estável com seu companheiro e deseje esta gravidez, pois esta não será reconhecida como legítima.
O outro discurso é o da igreja católica, que considera a abstinência como a única
conduta aceitável na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e condena o incentivo ao uso do preservativo, pois isto estaria induzindo a promiscuidade. Esta postura tem se mantido ao longo do século e está presente em textos escritos por Barros (1956, p. 132) – “a continência é o único meio de se garantir a si e à própria descendência contra os desastres de infecções que envenenam” – e de Campos (1951, p. 121) ao reconhecer que “quando bate o rijo vendaval das paixões, o medo do contágio não é âncora suficientemente forte para reter a nau desgovernada”, e que só a força da fé cristã e de um ideal religioso são capazes de garantir a castidade e evitar a promiscuidade.
A igreja defende que a educação sexual para os adolescentes deve se fundamentar na
moral, na ética e no ensino do autodomínio e que a outra face do discurso do sexo seguro seria o incentivo ao sexo livre e à imoralidade. Em nota oficial sobre a distribuição de preservativos em escolas, uma proposta dos Ministérios da Saúde e Educação, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) declara que há urgência de um verdadeiro plano de educação sexual que valorize a afetividade, a responsabilidade e a fidelidade. A nota10 afirma também que a verdadeira e plena expressão da relação sexual se encontra no matrimônio e que a população,
especialmente dos adolescentes e jovens, deve ter acesso às informações necessárias que proporcionem um estilo de vida saudável e comportamentos pautados nos valores humanos e cristãos e não apenas na distribuição de preservativos11.
Com os nomes de doenças venéreas ou doenças sexualmente transmissíveis (DST), a
prevenção das doenças vinculadas ao sexo acompanhou a trajetória da educação sexual
durante todo o século. Vincent (1992, p. 382) relata que a primeira metade do século viu-se assombrada pelo avanço da sífilis e por discursos apocalípticos que anunciavam a “sifilização de toda a espécie humana, caso a moral não prevaleça sobre os impulsos”, situação que começou a se reverter após a Segunda Guerra Mundial com o surgimento dos antibióticos. Na segunda metade do século a sífilis e as outras doenças sexualmente transmitidas perderam importância no contexto da saúde pública.
Inserida nesta diretriz, a educação sexual assumiu a função essencial de atuar como um dos instrumentos através dos quais os adolescentes são induzidos a modificar os
comportamentos considerados de risco e assimilarem o uso do preservativo como uma atitude racional e responsável. O sexo seguro tornou-se o aval da sociedade para o exercício da sexualidade adolescente.
A preocupação com a questão dos prazeres, principalmente os sexuais, a relação que se pode ter com eles e o uso que deve ser feito deles, permanece atual. Como atual ainda é a constatação de que não são as interdições, mas a insistência sobre a atenção que convém ter para consigo mesmo, a importância de se respeitar a si mesmo, suportando a limitação e a privação dos prazeres.
A educação sexual reproduz textos que valorizam o cuidado de si, esta “intensificação da relação consigo pelo qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos” (FOUCAULT, 2005-a, p. 47). E mantém, para intensificar e valorizar esta relação de si para consigo, vínculos estreitos com o pensamento e a prática médica, os quais definem maneiras de viver – com o próprio corpo, com o alimento, com a vigília e o sono e com o sexo –, propondo “sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e racional de conduta”(ibidem, p. 106).
O ato sexual é, há muito tempo, considerado algo perigoso, localizado muito próximo
do pecado ou da doença, necessitando ser constantemente vigiado e inserido num sistema de permanente controle.
É constante a tendência de responsabilizar o indivíduo – pela contaminação por doenças, pela obesidade, pela gravidez considerada inoportuna, pelos acidentes –, sem uma análise mais adequada das condições sociais que determinam a vulnerabilidade deste indivíduo a estas situações.
O ficar é um tipo de relacionamento cujas marcas são o descompromisso, a transitoriedade e onde o contato corporal entre os envolvidos é assumido como um
componente esperado desde o primeiro encontro. O desejo de manter contato físico, tocar e ser tocado, sentir excitação e prazer, explorar, conhecer tudo num momeno, não está vinculado a qualquer necessidade de interações posteriores entre os pares.
Agora os amores não são necessariamente únicos e podem ter prazo de validade. Os relacionamentos eventuais são nomeados como possibilidade de vivenciar intimidade, prazer e também, mas não necessariamente, amor.
Uma das normas atuais é a necessidade ou obrigatoriedade da proteção no início dos
relacionamentos sexuais, passando a ser consideradas desviantes, problemáticas ou de risco as relações desprotegidas. A exigência do uso do preservativo vai além do medo da contaminação ou de uma gravidez indesejada ao se configurar numa atitude socialmente responsável e que representa o cuidado consigo que o indivíduo desenvolveu. A substituição de controles e disciplinas externos praticados pelos pais para mecanismos internos dos indivíduos transferiu aos jovens a responsabilidade de “conciliar a exigência de reciprocidade com a realização individual; manifestar simultaneamente espontaneidade e autocontrole; comprovar flexibilidade e coerência em todas as situações” (BOZON, 2004-a, p. 152).
A possibilidade pode ter se tornado um imperativo no qual o sujeito é induzido a
perceber que aquilo que antes era proibido, agora não é apenas permitido ou opcional, mas tornou-se a única opção possível. Ao assumir o conceito de que “se eu posso, eu devo”, o indivíduo adota a obrigação de ter prazer e um bom desempenho sexual como norma, levando-o a buscar recursos artificiais que estimulam uma demanda por medicamentos, como o uso de Viagra por jovens, por implantes de silicone e por métodos que proporcionem o aumento dos órgãos genitais masculinos.
Entre as críticas à sexualidade contemporânea – nomadismo sexual dos indivíduos,
tirania do prazer e do desejo, permissividade e promiscuidade – e os elogios - consagra o direito ao prazer, liberação das minorias sexuais, igualdade sexual entre mulheres e homens, acesso generalizado à contracepção –, Bozon (2004-a) considera que a parte essencial das transformações dos comportamentos sexuais a partir dos anos 60 decorre de mudanças que, em princípio, não dizem respeito à sexualidade, como a massificação da educação ou o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho. E que, por outro lado, as transformações das relações sociais, na e pela sexualidade, talvez sejam menos radicais do que se tem afirmado: elas antes constituem uma interiorização do que um relaxamento dos controles sociais.
Nesta redisposição dos papéis sexuais é perceptível que as transformações de maior
significado se refletiram mais no comportamento feminino do que no masculino. Esta
influência é evidente no rompimento da exigência do casamento para que a mulher tivesse direito à atividade sexual, na autonomia para iniciar e desfazer relacionamentos, na liberdade de decidir sobre o momento adequado para assumir a maternidade. Mas alguns conceitos ainda prevalecem, como o de que os homens se encontram submetidos a impulsos sexuais incontroláveis enquanto as mulheres detêm maior domínio sobre sua sexualidade e de que a multiplicidade abusiva de parceiros sexuais continua comprometendo a honra feminina:
Enquanto os homens são encarados como sujeitos do desejo independentes, as mulheres continuam a ser vistas como objetos a serem possuídos, ou como sujeitos cujo desejo é moderado. Incumbe às mulheres resolver as tensões da sexualidade: espera-se que elas tentem estabilizar e regular o desejo dos homens, contendo-os dentro de uma relação amorosa ou dentro de um casal (BOZON, 2004-a, p. 94).
Esta coexistência de valores resulta de um processo demorado que tenta reverter
conceitos consolidados há mais de um século19. Contribui também para esta ambivalência a distância ainda presente entre o que diz a educação sexual e o que a escola produz, fala e pratica. Definida como o local mais adequado para o desenvolvimento de programa de educação sexual, a escola, em geral, “não disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo ‘a’ referência” (FELIPE e GUIZZO, 2004, p. 33). Os modos diferentes daqueles estereótipos masculino e feminino definidos como adequados desde a intervenção higienista na sociedade não têm visibilidade no espaço da escola, onde ainda predomina o investimento na produção de um determinado tipo de homem e mulher e não de outros.
O maior esforço educativo deve ser dirigido para mostrar ao jovem que o sexo não é fonte exclusiva de prazer e sim principalmente de responsabilidade. O aviltamento do homem está em transformar uma de suas mais importantes funções, que é a sexual, em apenas fonte de gozo, com o desvirtuamento completo de suas autênticas finalidades. Na verdade, o sexo, com suas conseqüências individuais e sociais, é fonte de responsabilidades. [...] Assim sendo, homem e mulher precisam considerar o sexo como fonte de responsabilidades com relação a eles mesmos, aos filhos e à sociedade (NÉRICE, 1961, p. 161).
Na década de noventa é no mesmo sentido que os pais são orientados a proporcionarem
condições para que seus filhos adolescentes possam “usufruir de uma sexualidade com afeto e responsabilidade, o que significa valorizar as relações amorosas, respeitar os parceiros e tomar as medidas para evitar uma gravidez indesejável e doenças sexualmente transmissíveis” (SOUZA e OSÓRIO, 1993, p. 99). O sexo nunca perdeu a característica de estar associado ao risco, à possibilidade de queda e a ameaças de doenças e morte, o que tornou permanente a exigência de cuidados. A responsabilidade para consigo e com o outro nunca pode ser minimizada.
Mesmo quando os textos sobre educação sexual descortinaram o prazer como uma
possibilidade e um direito, numa relativa compensação aos temas prevalentes de prevenção de gravidez e Aids, – “a grande mudança que um trabalho de orientação sexual na escola traz é poder discutir a questão do prazer” (EGYPTO, 2003, p. 18), – ainda é necessário reconhecer até onde é possível e se quer, pode e consegue ir, respeitando os limites próprios e do outro, valorizando escolhas individuais e assegurando o direito de dizer não (SAYÃO, 1995).
A educação sexual sempre pretendeu falar do sexo sobre o ponto de vista purificado e
neutro da ciência, mesmo quando incluiu o corpo erótico como indissociável do reprodutivo.
Uma ciência feita de esquivas que conduziu a abordagem do sexo pelo viés das perversões, aberrações, patologias e extravagâncias, da vinculação essencial a normas médicas e que “a pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos” (FOUCAULT, 2005-b, p. 54).
Esta ciência do sexo preocupou-se em pesquisar, ouvir, catalogar e decifrar, embaralhando as relações entre poder, prazer e verdade para administrar o sexo através de discursos úteis e normativos, mantendo-o na função de atuar na integração social, na saúde pública e na reprodução da população.
Em resumo, poderíamos dizer que o ‘normal’ em sexualidade se resume ao satisfazer-se e satisfazer sexualmente seu parceiro ou parceira, desde que isto não traga riscos ou danos a si mesmo, ao (ou à) parceiro e ao meio social. Dentro desse princípio, o que cada pessoa ou cada par faz no âmbito restrito de suas vida privadas só a eles próprios interessa, cabendo a nós, como indivíduos e como membros da sociedade, respeitar as naturais eenriquecedoras diferenças que fazem do ser humano algo de tão maravilhoso (VITIELLO, 1997, p. 48).
O conceito de comportamento normal rompeu barreiras e segundo Sayão (1995, p. 99),
“se dá prazer para os dois, se os dois se curtem, não machuca o corpo, não humilha, não extrapola os limites de cada um, não perturba ninguém, está valendo! Os dois, juntos, é que decidem o que deve ser normal para o casal”. Esta maleabilidade da educação sexual em se adaptar às novas verdades aparenta uma preocupação com o indivíduo e sua liberdade. Mas se é para o sujeito que as orientações, os conselhos e as normas apontam, é no seu corpo que elas se fixam. É “no seu adestramento,na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”, é neste corpo enquanto suporte de processos biológicos – “os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade” –, que se instalou uma tecnologia “recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2005-b, p. 131).
Estes programas vão propor uma educação sexual que promova a idéia da sexualidade
estar vinculada ao prazer, ou, como afirma Ribeiro (1990, p. 42), “contribuir para tornar a transmissão dos valores mais próxima de um padrão de comportamento voltado para o exercício de uma sexualidade sem culpa (na esfera pessoal) e sem opressão (na esfera social)”, pois, segundo este autor, investir na educação sexual é investir no crescimento global do indivíduo e aprimorar as relações humanas. Os manuais para a formação de professores educadores sexuais ressaltam a importância de fornecer aos alunos informações associadas à prevenção, a preservação da vida e da saúde e ao prazer, e não aquelas vinculadas à doença, à morte ou ao castigo.
Uma das conclusões freqüentes entre os autores é de que apenas a informação não muda
comportamentos e isto estaria evidente, segundo eles, no fato dos adolescentes engravidarem e se contaminarem, mesmo sabendo como evitar uma gravidez ou uma doença sexualmente transmissível. As mudanças comportamentais esperadas somente ocorreriam quando o adolescente integrar o conhecimento ao seu saber e ao seu cotidiano, o que seria mais factível de ocorrer através de debates sobre as dificuldades para o uso da camisinha entre os alunos do que uma palestra alertando sobre os riscos inerentes à negativa de usá-las nas relações sexuais (SUPLICY et. al, 1994).
Ellsworth (2001), ao descrever a teoria de endereçamento1, analisa a resistência dos
alunos ao conhecimento oficial, ou àquilo que estão aprendendo. Esta resistência
freqüentemente é analisada como algo que os estudantes fazem depois que eles já alcançaram a compreensão, ou seja, os estudantes “pegam” o conteúdo, mas, por questões que envolvem contextos sociais e culturais de desigualdade que incidem sobre a relação estudante/professor, se recusam a se conformar ou aceitar. Nesta perspectiva, quando o aluno resiste mesmo quando compreende o que supostamente deveria aprender, esta resistência é freqüentemente patologizada como alguma disfunção em sua capacidade de aprender ou assimilar conteúdos, resultante de problemas com suas capacidades cognitivas, grau de atenção ou motivação.
Esta interpretação equivocada ocorre, segundo Ellsworth, porque esta resistência não é analisada em termos do que acontece no espaço da diferença entre o lado de fora (o social, o currículo) e o lado de dentro (a psique individual, o estudante); porque o espaço da diferença entre o texto daquele que fala e a resposta daquele que escuta é ignorada; porque não há ajuste perfeito entre texto e leitura, modos de endereçamento e interpretações do espectador, currículo e aprendizagem, o estudante ideal ou imaginado e o real. O desenho da relação entre currículo e compreensão do estudante não pode ser o de uma estrada linear, de mão única, no
qual o currículo determina a compreensão, pois esta relação deve ser “desenhada como
constituída de oscilações, dobras e reviravoltas, voltas e retornos inesperados” (ibidem, p. 68).
A autora afirma ser impossível o ajuste perfeito entre o que um professor ou um
currículo quer e aquilo que um aluno compreende; entre o que uma instituição educacional quer e aquilo que o corpo estudantil responde; entre o que um professor ‘sabe’ e aquilo que ele ensina e entre o que o diálogo convida e aquilo que chega sem ser convidado. Além das informações não serem transmitidas para indivíduos “virgens” de conhecimentos sobre o tema, elas não serão apenas assimiladas, mas interpretadas de forma individual e misturadas a muitos outros componentes da vivência de cada aluno.
A idealização de uma escola cujo corpo docente tenha discernimento para detectar os
momentos adequados para introduzir questões sobre sexualidade, na qual o diálogo entre alunos e professores seja adequadamente aberto para proporcionar amplos debates sobre gravidez, aborto e Aids, onde a formação dos alunos permitirá a constituição de sujeitos conscientes e responsáveis, aptos a serem agentes transformadores da sociedade, tem dificuldades para se sustentar frente à realidade dos educandários brasileiros. Há vários motivos a reforçar esta dúvida sobre a capacidade da escola desenvolver programas de educação sexual dentro da metodologia proposta.
Um deles nos mostra que, enquanto o objetivo destes programas é produzir um aluno
livre e suficientemente orientado para fazer suas próprias escolhas, sua inserção ocorre no interior de práticas escolares que ainda atuam, em sua maioria, no sentido de definir o sujeito como centrado e unificado. Nas próprias propostas de programas de educação sexual, embora aqui e ali se perceba alguns breves destaques à pluralidade da adolescência, os autores adotam em geral a idéia do receituário único, onde falar é igual a falar para todos, não se detendo no entendimento de que os sujeitos / alunos são resultados de seus múltiplos relacionamentos, de seus recortes étnicos, de gênero, sociais e religiosos e produzidos no interior de
agenciamentos.
Estes discursos, entretanto, se mudaram de rumo, se excluíram o pecado, não perderam
suas características fundamentais de definir, enquadrar e rotular a sexualidade adolescente e, de algum modo, continuar a representá-la como algo que precisa ser vigiado e temido por suas possíveis transgressões. O objetivo, como escreveu Foucault (2006-c) em relação à sexualidade da criança no século XVIII, não é proibir, mas constituir, através da sexualidade adolescente, destacada como imortante e perigosa, uma rede de poder sobre a juventude. A sexualidade adolescente não é apenas objeto de análise, condenada ou tolerada, mas alvo de
intervenção e inserida num “sistema de utilidade”, regulada para o bem de todos e induzida a funcionar segundo um padrão ótimo (FOUCAULT, 2005-b).
Os manuais que orientam a implantação de programas de educação sexual nas escolas
extrapolam o objetivo de informar ou esclarecer. Os textos dos livros consultados em geral representam a sexualidade adulta como a “normal” ou o padrão a ser atingido e a adolescente como a diferente, imatura e incompleta, que precisa ser constantemente desvendada, cuidada e contida.
Neste início de século, por exemplo, pensar em educação sexual é promover estratégias para diminuir os índices de gravidez na adolescência e de contaminação
pelo vírus da Aids. Preocupações que não teriam o menor sentido na primeira metade do século XX.
Na introdução desta dissertação apresentei uma conceituação de bio-poder e, em outras passagens, a relação deste com alguns aspectos da educação sexual. Este poder sobre a vida das populações e dos indivíduos preocupa-se com o seu bem estar, com a sua saúde e segurança e, ao contrário da pregação católica, promete a boa vida e a salvação aqui na Terra. Para cumprir esta promessa, busca reforços em diversas instituições e utiliza alguns instrumentos, entre os quais o sexo é de importância fundamental.
A relevância do sexo como ferramenta para ações sociais, medidas sanitárias, controles e padronizações está reconhecida de longa data. A igreja há muito tempo, desde os primeiros séculos cristãos, percebeu a utilidade do sexo como um foco através do qual é possível atingir os indivíduos e as famílias, vinculando-o ao pecado e à necessidade de confissão. A partir do século XVIII, este tipo de influência foi assumido pelo Estado, o qual através da pedagogia (sexualidade da criança), da medicina (sexualidade das mulheres) e da demografia (regulação dos nascimentos), consolidou-se como o substituto do poder pastoral, alterando a metodologia e os objetivos, mas mantendo o foco.
Há no sexo tantas implicações cujas repercussões transitam do indivíduo até a
sociedade, que sua importância é constantemente valorizada. A relação sexual estabelece vínculos entre as pessoas, muitas vezes através de laços afetivos intensos; é a base dos índices de natalidade e da preocupação com a qualidade do pré-natal vivenciado pelas gestantes; é a fonte de doenças que se difundem com relativa facilidade, sendo algumas de acentuada morbidade e mortalidade; vincula-se a aspectos econômicos relevantes quando o sexo torna-se um produto a ser consumido. Estas implicações desencadeiam uma multiplicidade de discursos que tratam da sexualidade, sendo possível nomear entre eles os religiosos, os psicológicos, os médicos, os jurídicos e os pedagógicos, cujos objetivos aparentes são descrever e explicar, mas que na verdade nomeiam, elaboram e julgam. Trata-se de uma ampla mobilização para construir a verdade sobre o sexo, delimitar o terreno onde os
indivíduos podem transitar em relação a ele, definir as leis e as normas a serem cumpridas e estabelecer as penalidades aos infratores. Entre estes discursos, a relevância daqueles produzidos pelos médicos com o respaldo da ciência é essencial e está presente durante todo o transcorrer do século XX. Foram os médicos higienistas do começo do século que ao transformarem as características epidemiológicas da sociedade brasileira e melhorarem as condições de higiene e saúde da população, estabeleceram as bases para os conceitos de comportamentos normais, sadios e adequados em relação à sexualidade dos brasileiros. Foi também com a contribuição dos médicos que as doenças sexualmente transmissíveis foram prevenidas e tratadas de forma mais adequada, que os conceitos transitaram entre a perversidade e a normalidade da masturbação e da homossexualidade e a idade adequada para a gravidez foi adiada para após a adolescência. Fundamental para o exercício do bio-poder, a medicina contribuiu para que a sociedade, na busca de segurança e bem estar, concordasse em abdicar de parte da liberdade e da espontaneidade e de acreditar em outras verdades.
A pedagogia que produz uma normalidade que homogeneíza condutas e opiniões,
eliminando ou obscurecendo as diferenças individuais. A maioria dos textos de educação sexual, incluindo desde os mais antigos até os mais recentes, adota uma linguagem padroniz da e dirigida a um hipotético público adolescente uniforme, constituída por indivíduos brancos, de classe média, católicos e heterossexuais, desconsiderando fatores cuja influência nos comportamentos sexuais dos sujeitos, incluindo todas as suas práticas, significados e relacionamentos, são relevantes. Entre estes fatores, além da idade e das características individuais, estão os contextos sócio-econômico e cultural, os quais são preponderantes para definir como a vivência sexual vai ocorrer em cada indivíduo.
Embora os modelos a serem seguidos se modifiquem no transcorrer do século XX, eles
permanecem como base desta pedagogia que transita entre o “não deve” e o “deve fazer isto ou aquilo”, obscurecendo a visibilidade das escolhas pessoais. Esta tendência decorre de uma sistemática que tenta resistir às mudanças culturais e que se vale atualmente da escola como lugar privilegiado de saber sexual por ter esta instituição a característica ímpar de produzir uma homogeneização dos indivíduos que a família não pode proporcionar.
Esta ânsia de determinar e vigiar o normal, de estigmatizar os diferentes, de colocar a maioria dentro de padrões definidos, há muito nos confunde e atrapalha. Enquanto discutimos se somos brancos ou pretos, masculinos ou femininos, hetero ou homossexuais, não percebemos quantos indivíduos são vítimas desse discurso único ao serem focos de censura e discriminação e ao não conseguirem evitar sentimentos de culpa e vergonha. E enquanto tentarmos fazer com que os adolescentes comportem-se como os seus pais quando adolescentes, estaremos andando em círculos e ignorando que “é preciso tornar-se adulto, ou seja, capaz de inventar, de certo modo, a própria vida, e não simplesmente de viver a vida inventada pelos outros” (SAVATER, 2005-a, p. 42).
Esta relação entre educação sexual e adolescentes – ou generalizando, entre escola e
alunos –, não pode ser interpretada como uma via de sentido único cujo destino é a disciplina, a formação de indivíduos obedientes, conformados e defensores dos conceitos vigentes. Esta interpretação restritiva não vislumbra outras características destas relações que se tornam evidentes na análise dos espaços por onde emergem as dúvidas, as contestações, as práticas de liberdade e o surgimento de novos estilos de vida.
Em vez da tediosa pergunta ‘quem é você sexualmente?’, deveríamos perguntar ‘como podemos ser mais solidários entre nós?’. O que fazer para reinventar uma amizade, no sentido pleno da palavra, onde sexo deixasse de ser bicho-papão e pudesse ser só mais um ingrediente de nossas possibilidades de auto-realização? Por que, em vez de educação sexual, não começamos a pensar em novos experimentos sentimentais, amorosos, amigáveis? Quem sabe, assim, pudéssemos ver-nos livres de 200 anos de
sexualidade que só produziram intolerância, violência e perda de tempo.
Transitou por todo o século XX e permanece atual o enfrentamento entre os discursos católico e leigo, os quais falam de modo diferente das mesmas coisas. O primeiro condena o segundo por considerar que este induz à promiscuidade ao estimular o uso de preservativo. O segundo condena o primeiro por expor os adolescentes aos riscos de contaminação pelo vírus HIV e de uma gravidez indesejada ao condenar os métodos preventivos. O que se observou de deslocamento foi uma maior visibilidade aos argumentos leigos, aqueles que fazem a apologia do perigo.
Montardo
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